domingo, 9 de maio de 2021

CONSTRUÇÃO DE UM MONSTRO - Heraldo Lins

 


CONSTRUÇÃO DE UM MONSTRO



Vejo o futuro refletido em uma parede de névoa. Cada momento é dissipado e são mostradas as realidades seguintes. Ultimamente estou dividindo esses momentos em etapas. Revejo o passado dos últimos dez minutos e programo o alarme para os próximos. Fica evidente que meus planos ultimamente se restringem a um sexto da hora. Não quero, longe disso, manter o domínio do meu tempo, mas pelo menos ter consciência do que faço com ele. O objetivo é diminuir a ansiedade e o medo. 


Descobri que minha ansiedade é um desdobramento da personalidade medrosa. Eu acreditava na minha coragem. Achava-me destemido, mas depois que fiquei defendendo o forte dos reis magos da invasão holandesa, tremo sem controle. Isso foi por ter presenciado meus camaradas caírem um a um na batalha decisiva. A síndrome do pânico disparou quando no mesmo episódio fui feito prisioneiro. Jogado na prisão fiquei à mercê da subida das marés. Sabendo que os prisioneiros morriam afogados na maré alta, ao chegar lá providenciei um fêmur de um morto e respirei através dele durante vinte e um anos. Comia os caranguejos que vinham na enchente e alguns prisioneiros recém-encarcerados.


No meu corpo começou a surgir escamas e nadadeiras. Nem me preocupei em retirá-los, já que me protegiam do frio. O lodo na pele evitava de a água me molhar. A capa protetora me deu a capacidade de filtrar o sal e ingerir água potável. As unhas cresceram e viraram para baixo dos pés transformando-se em cascos. Criou-se uma pele fina nos olhos que vejo por baixo d’água sem abri-los. Mesmo com certas adaptações, torcia para sair de lá. 


Fui salvo pelos portugueses em 1654 e hoje, longe daquele inferno molhado, só consigo dormir dentro da cisterna. Uso uma mangueira para não morrer afogado e o cardápio é frango. Durante o dia recebo equipes de historiadores para registrarem minhas experiências. Nunca vi as reportagens serem publicadas. Acredito que é porque devoro a equipe durante a entrevista. 

 


                    

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Santa Cruz/RN, 20/03/2021 – 09:58

showdemamulengos@gmail.com

84-99973-4114

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