terça-feira, 16 de março de 2021

MANDA QUEM PODE - Heraldo Lins



 MANDA QUEM PODE



O bagre que encontrei boiando estava com uma tartaruguinha atravessada na garganta. O peixe era quase de um metro, mas seu alimento preferido teimava em não passar rumo ao estômago. Retirei a tartaruguinha e soltei o bagre dizendo-lhe que deixasse de ser guloso. Não sei se ele entendeu, mas dizer eu disse. Tenho mania de conversar com animais, objetos e quando estou com tédio, falo comigo mesmo. O bom de tudo isso é que não encontro nenhum questionamento. Eu xingo a cadeira ao tropeçar nela, corto a carne quando vou cozinhar, torturo a louça com lã de aço e nenhum deles reclama.  


Ontem mesmo, ao sair do elevador, avistei aquele tubo vermelho e comecei o diálogo: boa noite extintor. Vejo que toda vez que venho para o corredor você fica me observando. Não diz nada, mas percebo que estar sempre analisando meu entrar e sair daqui.  Sei que você é inimigo do fogo, mas saiba que não tenho nada a ver com sua intriga. Daqui a pouco vou acendê-lo para ferver o leite. Nem pense em apagá-lo. Depois disso saí caminhando e dei de cara com a porta. Ela só de pirraça continuava fechada. Tive que metê-la a chave. Já ameacei colocar um sensor de reconhecimento, mas não adiantou. Olhei para o preço e ele fica lá no alto impedindo-me que eu compre a nova tecnologia. 


Minha vida não está fácil. Tenho que cozinhar ovos para que fiquem comestíveis. Eles só ficam no ponto se eu fizer isso. As laranjas não querem mostrar a polpa. Eu preciso esfaqueá-las para conseguir ingeri-las. Elas sabem que sou violento, mas permanecem fechadas até eu partir para parti-las. 


Só quem me obedece, preguiçosamente, é o sol, a lua e as marés. Tem dia que quero exercitar meu poder, e logo cedo ordeno que o sol desapareça da minha frente. Eu entendo que ele é pesado demais para correr ao meu grito. Mas consigo. Anteontem comecei a dizer que ele fosse embora, e só por volta das dezoito horas ele havia desaparecido. Deu trabalho, mas consegui. Disse-lhe que voltasse ontem pela manhã. Ai dele se não obedecesse.    



Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 10/02/2021 – 16:01

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