ESCRAVIDÃO BRANCA
Enquanto outros estão planejando ir a Marte, venho de casa no coletivo cheio. Segurando no ferro do teto vou empilhado como sardinha enlatada. Meus pés pisam e são pisados. Axilas na minha cara e as minhas nas dos outros. Nariz reclamando cheiro de café misturado com perfume de feira. Sacolejamos de acordo com os buracos do asfalto e o humor do motorista. À minha frente os que viajam sentados são motivos de inveja. No assento que seria ocupado por mim está alguém falando alto ao celular. Um pouco ao lado uma criança chora desesperada por sentir os efeitos de ter nascido, como eu, na classe final do alfabeto. Fica no braço sem ser abraçada. É mais um entulho da gravidez indesejada. Ninguém conversa. Olhares desconfiados trafegam em busca das janelas esfumaçadas. O cansaço veda-me o sorriso. Não adianta se revoltar. A polícia está de prontidão. Aqui tem mulher, dos outros, mas tem. Duas horas de sufoco. Onde foi que errei para ter me metido nessa!? Fugir não posso. Falta-me forças. Morrer não quero. Dizem que quem se suicida vai para o inferno. Deve ser pior... do que ver meu filho chorando de fome... Se pudesse visitar o inferno e avaliar se vale a pena continuar nesta situação. Ah! Como seria bom. Mas não posso. A doutrina religiosa me deixou sem opção. Só em pensar me dá calafrios. Os pequenos precisam de mim vivo. Mesmo sendo pouco, levo para todos. Uma faísca de pensamento surge, mas não adianta largar. Quem largou está mendigando. Pensamentos deprimentes surgem enquanto esvazio as latas de lixo, esfrego o chão e cumprimento quem passa sem me ver. Estou voltando para casa e já são oito da noite. Chego e vejo todos dormindo. Amanhã novamente às quatro da madrugada tudo se reinicia. Falo baixinho para não acordá-los: boa noite Rosinha... perdoe-me...
Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)
Natal/RN
showdemamulengos@gmail.com
84-99973-4114
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