quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

NEM TUDO É DO JEITO QUE NÓS PENSAMOS - Heraldo Lins

 


NEM TUDO É DO JEITO QUE NÓS PENSAMOS

 

 

Hoje é dia de limpar a casa. Ordeno ao pó para sair da mesma maneira que entrou. Ele teima em ficar. Convoco o vento para levá-lo embora. O espaço é meu, então nada mais justo do que ordenar às substâncias estranhas que se retirem. É fácil assim. Antes quando pensava em realizar tal tarefa vinha-me à mente a imagem de uma vassoura, pá e movimento corporal para fazê-los funcionar. Meu padrão mental agora mudou. Penso, logo a montanha obedece. Se o pó não sair, chamo a polícia. Ela é treinada para expulsar qualquer tipo de invasores. Não vou gastar minha capacidade de mando com quem não obedece. Preciso economizar meu potencial para mandar o veículo se mover sem gasolina, o foguete subir sem ligar os motores e a casa se construir sem ninguém colocar cimento. Essas coisinhas pequenas, como pó, papel ou líquido derramado, deixo para os outros.

 

A mesma coisa acontece com tirar pensamentos desagradáveis. Mudo o foco. Se antes ficava preocupado com a falta de seriedade na política, agora só voto em ladrão. Se é corrupto, tem meu voto. Nesta última eleição votei em branco. Não encontrei nenhum candidato que se autoproclamasse desonesto. Todos, nos discursos, visavam o bem-estar coletivo. Fiquei sem opção, mas pelo menos não me aborreci.    

 

Evito me aborrecer também com minhas células que morrem a cada três meses, e, sem minha ordem, vão alimentar formigas, baratas e vegetais. Suporto este desaforo porque outras nascem e assim me renovo. Por isso nem me espantei quando passei semana passada no quintal aqui de casa e um mamão me pediu a bênção. Apenas surpreso ao ouvi-lo dizer que era fruto das minhas células mortas. Deduzi rapidamente que parte de mim está encarnado em um mamão.  Quando ele ficou maduro fiquei indeciso se o comia, já que estaria comendo a mim mesmo. É o ciclo da vida me envolvendo. Por mais que filosofo o pó continua no chão. Nada aconteceu com ele, só comigo e o mamão. Vou voltar à realidade e varrê-lo...      

 



 

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 07/01/2021 – 16:45

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