Borboletas do Trairi
Flores de maio.
A nostalgia doce e morna que envolve a tarde traduz o quadrante poético
da vida provinciana.
Meditando sobre essas nuanças filosóficas, descubro, a cada viagem de
Natal ao interior, que sou testemunha silente de desastres ecológicos
insuspeitáveis: a morte das borboletas em voo.
Enquanto o carro rasga o pretume do asfalto, buscando seu destino,
centenas de pequenos seres frágeis e coloridos se projetam em plenas manobras
aéreas contra o veículo veloz e imbatível.
São borboletas em voo. Azuis, amarelas, vermelhas, pretas, brancas e
cinzas, seres policromos atravessando a sorte dos homens e encontrando a morte
nos para-brisas dos automóveis. A estrada solitária se recobre com os corpos
miudinhos desses insetos graciosos.
Imaginação analógica a do poeta, vejo nelas criancinhas saudáveis e
fugidias, perambulando livres com sua inocente imprudência, cortando o vexame
dos homens de negócios; vejo nelas velhinhos, lentos e risonhos, com sua
mansidão e tolerância, desafiando a insensatez e pressa cotidiana dos homens do
asfalto; vejo nelas viandantes nômades, vira-mundos em seus périplos espaciais,
indiferentes à vida ofegante e alienante dos homens de gabinete.
Borboletas mortas em pleno voo, vítimas da modernidade. As borboletas não
são amparadas pelo Código Nacional de Trânsito. Não há sinalizações nem normas
regulamentando os direitos de locomoção das tenras crisálidas.
A viagem prossegue. Sinto profundamente pelas borboletas despedaçadas com
violência nos espelhos do carro. Num instante, o para-brisa reflete os matizes
da dor: os laivos de sangue multicolorido escorrendo como lágrimas incontidas
pelo vidro inteiro. E eu retenho as minhas, mas choro intimamente, com a
mesquinhez do destino das borboletas em flor.
Bate uma chuva cheirosa e refrescante, lavando e levando as asas
esfaceladas, para logo em seguida, passada a chuva, novas e distraídas
borboletas sejam atropeladas pela urgência das horas e arrastadas
melancolicamente pelos ventos da tarde.
A viagem chega ao fim. Chego em casa como quem chega da guerra: cansado e
triste.
Consolo-me, no sossego do fim de tarde, em rabiscar algumas frases em
defesa da liberdade e da esperança das borboletas em voo.
Flores de maio. Flores do Trairi.
Simplesmente, borboletas.
José da Luz
Professor da UFRN, Doutor em Estudos da Linguagem e autor do livro Gravetos e Veredas (pensamentos, máximas, aforismos)
Muito boa, J. Luz. Caminhei devagar na leitura como que juntando as borboletas mortas. Viajei, não só no pretume do asfalto, mas nas suas lágrimas borboletantes. Grande amigo Zé da Luz. Um dos que participou como voluntário do cursinho pré-vestibular que organizamos. Lutávamos, à época, para o campus de Santa Cruz não fechar por falta de alunos...
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