AS TORMENTAS DO SENHOR CAPITÃO
No exato momento em que ele transpôs a rampa do palácio de vidro para brindar um copo de café com a turba alvoroçada no primeiro boteco da esquina, souberam que o povo estava no poder, não por quaisquer adivinhações cósmicas e conspirações das américas, mas pela faixa verde-amarela que ele exibia tal qual uma rainha de baile.
E foi assim, com sua duvidosa majestade metida numa camiseta surrada e num chinelão de dedo, que arrancou aplausos de todas as gentes, continências de todos os generais, reverências dos presidentes de todos os países reais ou imaginários e benzeduras dos papas de todas as religiões da terra e do céu.
Prometeu ali que, sob o risco da sua caneta, redesenharia fronteiras, provocaria a abjuração dos sábios e doutores de todas as ciências, alteraria os alfarrábios das leis irrevogáveis, desnudaria os juristas mais togados e mandaria à puta que os pariu os que se interpusessem ao risco providencial da sua trajetória.
E foi assim que, na sua odisseia delirante, ordenou que fuzilassem os comunistas, incréus de deus; que queimassem os índios cujo deus é outro; e estraçalhassem os bandidos, viados e drogados, sobre os quais o deus verdadeiro não confere importância.
E quando, na escuridão da noite no centro do mundo, ouvirem da suíte presidencial os gritos delirantes, deixem logo a postos a Guarda Nacional, acordem o ministro da justiça e despertem os Dragões da Independência, pois que os comunistas lhe puseram uma lingerie vermelha no lugar da faixa da pátria e trocaram-lhe as armas de grosso calibre por batons e beijos carmins. E cuidem!! Que no estrangeiro esses inimigos da ordem já destruíram muitas pátrias, famílias e propriedades e agora querem destroçar a paz presidencial.
Logo eu, que fui o escolhido para seguir os passos do outro messias, como ele também tive o meu ventre perfurado por aquele Longinus insano e providencial, como ele segui a mesma sina de andarilho por essa terra em que judas perdeu as botas. E agora não me venham desenterrar esses fantasmas que afoguei com a minha dor, nem venham corromper a força, o tamanho e a potencia da minha caneta crepuscular.
E se a merda dos números da inflação teimarem em subir, o poder da minha pena há de devolvê-los a sua insignificância; e se preciso for substituam o substituto do substituto até que as estatísticas oficiais sejam apenas aquelas que invento. Pois a minha missão é criar um país sem pobre, nem que para isso seja necessário mata-los de raiva, de fome e de susto de bala; que o meu desígnio é a destonar a corrupção, nem que precise furar os olhos da lei, porque eu não tenho vocação para banana, nem fui eleito para ser a rainha da Inglaterra.
E, quando for propício, desviem os terremotos, tsunamis e cometas e os redirecionem para as terras e os céus de Cuba e da Nicarágua, onde a única coisa que prospera é o ateísmo. Eles estão confabulados com os demônios, que não respeitam credenciais de autoridade constituída e invadem o mundo com seus pijamas vermelhos escatológicos, foices, martelos e outros instrumentos impróprios para assim profanarem os vasos sagrados com as promessas do paraíso.
E aprontem as fogueiras para o churrasco, e que a comida seja na largura da boca; mas aproveitem as chamas para queimarem os livros dos hereges desiludidos, os alfarrábios dos cientistas equivocados e os baralhos dos sábios erráticos, cujo evangelho está escrito na língua do passado. Só assim a terrível paz de deus será estabelecida.
Aproveita e queima também esses sorrisos insanos desse povo que finge que ama, que finge que rir e finge que goza, porque isso só pode ser coisa do demo, de drogado, de puta e vagabundo.
E, enfim, quando chegar a era das incertezas com as suas ruidosas multidões, eu estarei vigilante, com meu fuzil de mira automática, protegendo os lares dos homens de bem, estarei nos outdoors promocionais, estarei marchando com Jesus no seu exercito da vingança e da redenção.
E em todos os alto-falantes do país irão repetir que o Estado Sou Eu, e estarei onipresente em todas as vagas de estacionamento, nas matérias da escola, nos labirintos da cabeça e nos calabouços da alma. E de lá vou governar o mundo, estender as leis da pátria, endurecer a ordem e os costumes e regular os esfíncter para que o progresso campeie e os tempos não voltem jamais.
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*Esse texto foi livremente inspirado no livro de Gabriel Garcia Marquez, publicado em 1975, ¨O Outono do Patriarca¨, na qual traça uma belíssima caricatura das ditaduras que á época prosperavam na América Latina. Essa foi a única inspiração.
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