CARTA
A UM CRÍTICO DE MEUS VERSOS (Gilberto Cardoso dos Santos)
Meu
poema FUMAÇA ACIMA DE TUDO teve grande repercussão nas redes sociais. A poetisa
e cordelista Cláudia Borges, por exemplo, não só fez comentários positivíssimos como
me falou de muitos outros que o haviam lido e elogiado.
Eis
o poema:
Nando Poeta o divulgou e recebeu de um de seus
contatos o seguinte comentário:
“Quando a resposta do artista diz que
Deus tocou fogo em Sodoma, está reforçando a tese do adversário, de que Deus é
vingativo e está acima de tudo. Deus não está acima e nem abaixo de tudo, Deus
é a causa primária do universo e a inteligência suprema. Seria muita burrice,
tocar fogo numa cidade em razão dos "pecados" ou vícios de parte de
seus habitantes. Isto é totalmente contraditório com a inteligência e justiça
divinas.
O artista fala do ópio se referindo a
religião como ópio do povo, a religião fundamentalista é realmente ópio, mas,
Deus não tem nada a ver com religião. Religião é criação humana.
O artista tão ignorante quanto Bolsonaro
sobre Deus, fala que Deus a tudo escuta, mudo. Deus não intervém nas ações
humanas, se fizesse isso, seria contraditório com o nosso livre arbítrio dado
por ele. E Deus não revoga suas leis, pois, se fizesse isso não seria perfeito.
Quando o artista fala na sarça ardente e
na mão do onipotente, ele se refere a Moisés no Monte Horeb. Segundo a Bíblia
Deus apareceu a Moisés e mandou ele libertar o povo hebreu escravizado no
Egito. Neste episódio apareceu um fogo que não consumia a sarça(arbusto). O
artista diz para não ver na sarça ardente a mão do onipotente, aí ele acerta na
comparação com o fogo que consome a Amazônia, que é ação humana e não Divina.
Já no final, o artista compara Bolsonaro a um cão miúdo. Aí mais uma vez ele
reforça a visão fundamentalista religiosa que criou um cão ou diabo com poder
igual a Deus. O cão ou demônio simplesmente não existe, seria
contraditório com o poder absoluto de Deus. A existência de um ser rival
tão poderoso quanto Deus é invenção do homem. Esta visão do artista reforça a
concepção fundamentalista de que o mal é feito por um cão poderoso, comparando
a Bolsonaro. O artista tira do homem a capacidade de fazer o bem ou o mal e
joga para o sobrenatural, reforçando o misticismo.
Eu não conheço o artista Gilberto
Cardoso. Mas, sei que sua arte é livre e independente de minhas concepções e
análises. Entretanto, Se vc achar interessante e produtivo, repasse meu
comentário sobre a obra para ele.
E se ele quiser conhecer que é Deus e
como funciona sua justiça e poder absolutos, recomendo ler o livro dos
espíritos de Alam Kardec.
Eu teria feito diferente. A resposta
materialista reforça a pregação dogmática, fundamentalista e a fé cega.
A única resposta consequente para a
utilização indevida do nome de Deus por políticos oportunistas e por falsos
profetas é usar o ensino lógico de Jesus em contraposição aos absurdos que eles
pregam.
Escrevi
uma carta e enviei-a não apenas para quem fez a crítica, mas também para Nando,
intermediador de nossa conversa. Nando disse-me:
Perfeito. Ficou muito boa, com
embasamento. Seria legal publicar todo esse debate. Isso seria um ensinamento
para o mundo dos poetas, aprenderão que as críticas são bem vindas e a
contestação tem que ter argumentação com embasamento. Parabéns!
Eis
a carta:
Caro
Belchior, recebi com apreço sua crítica.
Vi
sua análise como construtiva, pois me faz repensar o fazer poético. Encanta-me
perceber as diferentes percepções em torno de qualquer assunto, algo tão
inerente à espécie humana. A Bíblia, por exemplo, o livro O Capital de Marx e
até mesmo a Constituição dão margem a diferentes entendimentos. Parece- me não
haver exceção à regra, exceto na leitura de manuais puramente técnicos.
Não
me surpreende, portanto, nem vejo como negativo o que disse. Foi bom, depois de
vários elogios ao texto, ouvir uma observação divergente. Quem me garante que
os que aprovaram o texto tiveram dele o mesmo entendimento que eu?
A
poesia pode se dar a esse luxo de ser ambígua, de permitir e espelhar
diversos olhares.
A
primeira coisa a se fazer na leitura de um poema é separar o eu- poético do
autor. Às vezes temos um choque entre o que diz ou deixa de dizer um poeta
quando comparamos o escrito à vida daquele que o produz. Isso às vezes ocorre
de propósito, como bem o fazia Fernando Pessoa ao criar heterônimos, tão
diversos entre si e de quem os concebeu.
Outra
coisa: nem sempre o que ouvimos é o que o autor disse. Alguém disse: "Eu só sou responsável pelo que eu falo, não pelo que você
entende." Infelizmente, é assim que deve ser, pois sempre estaremos
vulneráveis às mas interpretações.
O
eu poético pode estar em consonância com o que pensa o autor, bem como pode,
num exercício de alteridade, tentar exprimir pontos de vista contrários aos do
autor ou dele mesmo.
Ao
mencionar o Deus que queimou Sodoma apenas busco exprimir o senso comum dos que
votam por motivação religiosa, embasados em escritos milenares, cuja visão se
faz determinante na aceitação de tudo o mais.
O
autor deste poema não crê que uma divindade matou homossexuais no passado e sim
que seres homofóbicos em diversos momentos o fizeram em nome de algum deus.
Esse mesmo espírito move eleitores de hoje no Brasil e no mundo. O deus que
mandou derrubar árvores, queimar cidades
e pessoas está mais vivo que nunca na mente da humanidade. O Deus que, segundo
Nietzsche, está morto, para estes parece muito vivo.
Este
poema se inspirou na charge que a ilustra, do premiado chargista Rodrigo Brum.
As imagens que utilizei direta ou indiretamente têm a ver com
"fumaça". Ao citar ópio, naturalmente pensei na famosa frase de Karl
Marx, mas não me limitei a isso. A produção de ópio também tem sido causa de
desflorestamentos e guerras. A analogia fora feita antes dele, - Marx - não em
sentido essencialmente pejorativo. Heine, por exemplo, escreveu em 1940:
“Bendita seja uma
religião, que goteja sobre o amargo cálice da humanidade sofredora algumas
doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e
esperança”.
Quatro
anos depois, Marx diria:
"A
religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração,
assim como ela é o espírito de uma situação sem espiritualidade. Ela é o ópio
do povo”.
Não vejo
nada de condenável na frase de Marx, a ponto de que alguns sintam a necessidade
de abrir exceção para algum conjunto de dogmas em particular. Creio que ela
seja aplicável a toda e qualquer religião, sem significar que esta seja digna
de perseguição por causa disso ou que isto a torne prejudicial à
sociedade. O ópio, que para muitos é
simples alucinógeno, para outras é visto como uma fonte de cura, como acontece
com a religião. O que me parece incontestável é que a manifestação de fé -
qualquer uma - tenha esse efeito narcotizante sobre a dura realidade e
traga sentido à vida. A visão religiosa retrógrada, produtora e vítima de
equívocos, trouxe danos irreparáveis à humanidade e ao planeta. É para os
perigos do mau uso da fé que busco chamar a atenção.
Você
buscou justificar o silêncio divino e ao fazê-lo não anulou o fato de que ele
permanece calado diante de tantos absurdos feitos em seu nome. O fato é que o
ser humano tem dado voz aos seres espirituais e nada mais ouve além da
própria voz dizendo-lhe o que gostaria de ouvir. O ser que faz epifania na
fumaça do ópio tem dito coisas terríveis, indignas de nossa aceitação. É a isso
que me refiro no poema.
Você
entendeu bem a parte referente à Sarça Ardente. Usei o episódio bíblico como
analogia, transpondo-a para nossa realidade. Seu entendimento da imagem do
cão-miúdo não reflete o que pretendi transmitir. Cão-miúdo, em uma de suas
várias acepções quer dizer "pobre de espírito, - um pobre diabo, por assim
dizer. Trata-se de um diabo pequeno, "humano, demasiado humano", como
diria Nietzsche. Não se trataria de um ser mítico, mas do próprio homem agindo
em nome de seres doutra esfera. Detalhe: por cão-miúdo eu não quis dizer
Bolsonaro. Quis exprimir o que penso de madeireiros e agropecuaristas
supostamente patriotas, mas de visão limitada, ególatra. A Bancada da Madeira,
ao fazer coisas mesquinhas, poderia ser o cão-miúdo. Por incrível que possa
parecer, caro Belchior, alguns religiosos extremistas veem o que ocorreu na
Amazônia como ação direta de Deus, irado com a libertinagem que tanto incomoda
os conservadores. Semelhantemente, quando choveu apagando alguns focos, houve
quem gravasse vídeos dizendo que Deus mandara água e que desse modo mostrava de
que lado estava. Em suma, eu ponho no homem a capacidade de fazer o Bem e o
Mal, e não o contrário.
Por
duas ou mais vezes você faz referência ao Espiritismo. Numa delas, o põe como
exceção à analogia do ópio e no outro me recomenda O Livro dos Espíritos. Sendo
espírita, você deve ser sabedor de que na última eleição importantes figuras do
Espiritismo se posicionaram favoravelmente à onda conservadora que resultou no
que ora vemos e experimentamos. Divaldo Franco, por exemplo, mostrou estar em
sintonia com o pensamento conservador e pseudo moralista. Claro que não se
tratou de algo oficializado, pois houve muitos embates no meio por causa disso.
Muitos se decepcionaram grandemente com o ilustre kardecista e alguns até esfriaram na fé
por causa disso. Portanto, imaginar que a leitura do Livro dos Espíritos nos
livraria dos enganos comuns ao ópio da fé, não se sustenta com o que temos
visto ao longo da história do Espiritismo. E isso acontece porque, à semelhança
de meu poema, ele não será visto por todos do mesmo modo. Prova disso são as
divisões do movimento espírita.
Você
finaliza dizendo que levantar a bandeira dos ensinos de Jesus seria nossa única salvaguarda. Embora simpatizante e defensor das ideias do Cristo, não
creio nisso e explicarei a razão.
Provavelmente não há nenhum nome que tenha
tão sido mal utilizado quanto o de Jesus, empregado nas esquinas onde falsos
carentes mendigam, nos púlpitos onde se extorque as ovelhas e nos congressos onde se aprovam leis tenebrosas. Eduardo
Cunha, por exemplo, comprou o domínio jesus.com. Sugiro que assista a
minissérie de 4 capítulos “The Family, a democracia ameaçada” (Netflix). A
série versa sobre um grupo poderosíssimo que atua nos bastidores da política
americana, existente há quase 60 anos, responsável por decisões e
acontecimentos históricos terríveis. O interessante é que o lema desta entidade
e poder de atração está na palavra JESUS. A centralidade do que disse e fez o
Cristo no norteamento de suas atividades é, à primeira vista, encantador. Não
passa, porém, de mais um engodo. Desnecessário é lembrar que a citação de João 8:32 foi determinante para a vitória da extrema direita no Brasil.
Por
causa disso, sou mais propenso a pensar como o teólogo italiano Enzo
Bianchi, que disse:
"Eu pertenço a uma geração [...]
que nunca citaria o Evangelho no parlamento, por respeito ao Evangelho e o
estado secular.".
Finalizo
falando de minha alegria por meu poema ter sido objeto de sua acurada atenção.
Espero que, mesmo com diferentes concepções de mundo, nossos pensamentos
convirjam para o Bem Comum.
Abraços!
Santa
Cruz, 27.08.2019
Parabéns,poeta e estudioso Gilberto Roncollo Cardoso. Amei ler seu texto.texto. Muito bem escrito assim como a sensibilidade do poema. Tornei-me seu fã e seu leitor
ResponderExcluirUm abraço do poeta El Gorrion.
Amigo Gilberto, sua elegância e sensibilidade às opiniões, às vezes contrárias e/ou equivocadas sobre as suas, mostra toda sua alma.
ResponderExcluirA linguagem poética permite interpretações de quem a lê.(lembra daquele óculos caído numa exposição de arte, onde o público parou para fotografar pensando que fazia parte do acervo? )
Enfim, parabenizo a ambos pelo debate respeitoso.
Obrigado, poeta Pádua, El Gorrioncolho. Grato pelas palavras incentivadoras.
ResponderExcluirEu não conseguiria fazer um GRANDE comentário para expressar a maravilha que é ler um texto magnífico...digo: parabéns!
ResponderExcluirMuito grato, Marli! Prazer enorme ler seu comentário.
ExcluirExcelente carta/resposta, Gilberto Cardoso!
ResponderExcluirObrigado, nobre advogado das boas causas.
ResponderExcluirGilberto li sua carta-resposta sem respirar. Seu texto é uma primazia para os estudiosos das tessituras textuais. Ousaria gastar a palavra genial que Ariano Suassuna não quer que gaste com esse seu texto. Além de tudo, você seleciona e toca nas palavras com tamanha sensibilidade que mesmo sutilmente a gente percebe que a intenção comunicativa foi cumprida. Excelente seu texto
ResponderExcluirGostei da sua escrita desde que lhe ouvi "cordelizando" Augusto
dos Anjos
Oh, Luzia, agradeço DEMAIS por suas palavras, tão incentivadoras! O propósito foi cumprido, então.
ExcluirOlá, parabéns, poeta, escritor, colega de magistério, contemporâneo de faculdade, meu grande amigo Gilberto Cardoso pelo magistral poema. Sobrou inspiração, abusou do conhecimento de mundo, deitou e rolou nas analogias, foi intenso e fluente no diálogo com a Sagrada Escritura, instaurando coerente processo intertextual, sobretudo interdiscursivo para, sarcasticamente, expressar seu ponto de vista lúcido sobre nossa conjuntura política e social de horizonte "anuviado", no dizer de nosso genial Graciliano Ramos. Estou encantado com o poema e com a Carta-resposta. Seu talento está cada vez mais refinado. Nota dez e meio. Grande abraço! - Francisco Medeiros
ResponderExcluirFrancisco Medeiros você foi magnífico no seu comentário. Era tudo o que eu gostaria de dizer, mas não tenho a competência e nem o repertório linguístico. Palmas para você e repito sua nota ao mestre Gilberto Cardoso Dos Santos - Joseni Santos
ResponderExcluirEspetacular... Digno de um milhão de curtidas. Parabéns, meu amigo Gilberto Cardoso!- Ismael André
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