E eis que, hoje, me deparo com um áudio, via Whatsapp, do
mestre Rosemilton Silva me intimando pra escrever “um bocado de linha” sobre o
seu livro, Crônicas da Casa de Maria
Gorda. Aí pensei, ‘Nossa Senhora!!! Quanta honra!!! Quem sou eu pra escrever esse bocado de linha
sobre as crônicas literárias de um mestre da palavra escrita?’. Eu já o conhecia desde 1976, quando fui seu
aluno de língua francesa, no Ginásio Comercial, mesmo sendo ele um professor
interino, em substituição ao Mons. Raimundo Gomes Barbosa, que fora a uma
excursão ao Chile e confiara seus pupilos a esse poliglota, mestre do
jornalismo brasileiro. E tive a felicidade de reencontrá-lo, quatro décadas
mais tarde, no Facebook, ele e aquela sábia irreverência intelectual. E sua
crônica, publicada nessa rede social, à primeira vista, me deu um susto,
semelhante, talvez, ao espanto que os leitores e, sobretudo, a crítica
literária carioca e brasileira tiveram quando Machado de Assis publicou
Memórias Póstumas de Brás Cubas, romance que revolucionaria a técnica
narrativa, ao criar um defunto-autor, personagem-narrador em 1ª pessoa e
onisciente de seu universo. Li e reli essa e todas as outras crônicas que o
Mestre Rosemilton publicou nas manhãs de sábado, no facebook, e me deliciei com
a sustentável leveza de suas linhas, justamente por seu autor não ter a
preocupação com a estética literária de seu texto, bem como de não se apegar aos
arroubos ditatoriais da gramática normativa, nem de temer as imposições dos
elementos narrativos, quando das diretas e indiretas de seus discursos, dos
rótulos psicológicos de seus personagens, do ordenamento linear de seu tempo e
de seu enredo. Enfim, me deparei com um escritor de boa consigo mesmo,
desprovido de imposições acadêmicas e dos preconceitos vários, sociais,
psicológicos, linguísticos literários e
etc. Li um Rosemilton cheio de onda, a construir, em cada crônica, um túnel
entre os seus tempos, presente e pretérito, para fotografar Santa Cruz, seu
povo e sua história, um túnel capaz de levá-lo a encontrar-se de novo com os
seus conterrâneos-personagens nos templos de suas aventuras juvenis,
encontrar-se com sua grande amiga, confidente, conselheira e guru, Maria Gorda,
protagonista-coadjuvante de suas linhas e ‘Cumade’ de suas prosas, mulher
inteligente, forte, educada, solidária, mansa, geradora de emprego e renda e empreendedora
da mais famosa Casa das Noites, das Bebidas e das Comidas Típicas dos Famintos Jovens
Iniciantes de Santa Cruz. Maria Gorda, diferentemente de Brás Cubas, não é
defunta-personagem, apesar de falecida há mais de 30 anos, pelo contrário, é
personagem-viva a confabular as acontecências sócio-político-econômicas do dia
a dia de sua cidade com o seu ‘cumpade’, de quem tem a certeza do respeito e da
admiração recíprocos. Nas Crônicas da
Casa de Maria Gorda, Rosemilton está à vontade, sentado à direita de sua
irretocável memória, e à esquerda de sua inesquecível ‘cumade’, a costurar, com
a maestria de sua linguagem simples, matuta, mágica e poética, cada ponto do
elo de seus tempos para neles transitar, pra lá e pra cá, pra cá e pra lá, como
se único fosse, e fazer brotar, além-memória, o mormaço da Rua do Vapor, os
esportistas da Frei Miguelinho, o arrepio do Beco das Almas, os bate-papos dos
jovens sonhadores sentados às mesas redondas do Bar do Ponto, as quadras de
areia da Praça Cel. Ezequiel Mergelino, o ruído do apito da usina de algodão, os
bailes dos carnavais da Prefeitura e as fantasias coloridas do Trairy Club, o
azul e encarnado do Pastoril, o encarnado, azul e branco do Boi de Rei do
mestre Antônio da Ladeira, a Noite dos Agricultores na Festa de Santa Rita de
Cássia, com o seu aguardado leilão na voz, que ainda hoje ecoa, de Mané da
Viúva. É claro que as Crônicas da Casa de
Maria Gorda não têm um guarda-roupas encantado, como aquele de As Crônicas de Nárnia, que transporta
personagens e leitores para um mundo de criaturas fantásticas e batalhas épicas
entre o bem e o mal, muito menos têm o sentimento negativo, irônico-satírico de
Brás Cubas, no revolucionário romance de Machado de Assis, mas têm a Marinete,
o ônibus ou “a sopa” de Severino Colete
a fazer a linha ida e volta Santa Cruz-Natal, a paciência fria de Borrego, a ressaca de Pageta, os burros de
Meireles a abastecer a cidade com as água do açude Santa Rita, têm a dicção
perdida de Canindé Boca de Cascudo, o canto triste de Fogão nas cantigas d’amor a
entorpecer a sua solidão ébria, os Grêmios Estudantis, o Carrossel de Manoel
Bernardino, o ronco do ‘Papá” João Lucas e o seu chapéu Panamá a ocupar mais um
assento no Cine Santa Rita lotado, têm a Difusora Irapuru e a paixão das moças casadeiras
por seus locutores Zé Maria, Zé Iválter e Luiz de Almeida, têm a preocupação política de Jácio Fiúza, João
Bianor e outros tantos políticos locais, têm os remédios santos de Dr.
Ferreirinha e do Dr. Aproniano, têm a Farmácia centenária de Sebastião, o jipe
amarelo de Cabo ‘Migué’, a valentia oral dos soldados Andorinha e Pacheco, o
lambe-lambe de Mané da Viúva, o mestre Antônio da Ladeira, os cavalinhos, a
roda gigante e as belas páginas musicais oferecidas aos namorados enamorados
nas noites festivas do Parque São Luiz, têm o assobio agudo de Gravatá e os
acordes belos dos violões de Fabiano & Franklin e Zé Domingos, têm a banda
de música do mestre Oscar, o cuscuz e o “quer peixe, fresco?” de Juvenal Pé de
Copa, têm o Coral de Santa Rita e a batuta de D. Nanita, o ecletismo de Padre
Émerson e as belezas de Terezinha Bastos, Iara Lúcia e Newman Carvalho, têm Santa
Cruz e a revolução mágica de sua história. As
Crônicas da Casa de Maria Gorda têm um fazer literário incomum, em que os
elementos de sua narrativa tomam o atalho do diferente, do novo e do atraente. As Crônicas da Casa de Maria Gorda têm,
em todas as sua páginas, Maria Gorda,
sua Casa, suas Crônicas e a criatividade
irreverente do mestre José Rosemilton Silva.
(Nailson Costa)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”