quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Sobre essa chuvinha que está caindo... ou sobre a inspiração que ela me deu


Sobre esta chuvinha alvissareira

Por Cecília Nascimento
14/02/2018


“O sertanejo é antes de tudo um forte”
(Euclides da Cunha)

            O sertanejo chega do trabalho cansado, liga a televisão no jornal corrente, senta-se à mesa para pegar a boia com sua esposa e filhos e mantém os olhos atentos à tela, tão solene quanto em uma prece. Não é que ele esteja por demais preocupado com o preço da gasolina... Sua vida inteira foi percorrida a pé. Seu café, de manhã, é fervido a lenha... E é levando lenha nas costas que ele tem criado todos os seus filhos. Repito: não é com o preço da gasolina (que por sinal não para de aumentar) que ele está preocupado. Também não é com os rumos do País... Ele assiste a cada notícia sem demonstrar qualquer sobressalto e vai ouvindo que os políticos estão cada vez mais corruptos, que descobriram agora outro golpe na praça, que as pessoas estavam desenfreadas neste carnaval, que os impostos bateram recorde neste início de ano comparados ao ano anterior, que as ONGs estão se mobilizando para salvar os animaizinhos de rua, que está se concluindo o prazo para matrícula nas faculdades, que o resultado da última partida do campeonato não foi como o esperado, que o hit do verão está abalando nas paradas de sucesso... A tudo isso assiste o sertanejo quase inerte, movendo apenas lentamente seu maxilar para mastigar seu feijão com farinha.
            A vida parece repetir-se como uma sequência invariável das mesmas figurinhas até que, finalmente, aparece na tela a imagem de um mapa e junto com ele, uma moça bem vestida com a pretensão de saber a previsão do tempo para os próximos dias. Nesse momento não tem apatia que se sustente. Os olhos dele se arregalam como quem vê assombração. Se se fizesse silêncio total daria para ouvir as descompassadas batidas do seu coração, que indeciso, ainda não sabia se devia se agitar porque talvez chovesse ou recuar, mofino, pausado, comprimido porque novamente elas, as tão esperadas chuvas, passariam longe dali.
            Atento às imagens, analfabeto de pai e mãe, o sertanejo observa as cores mais fortes na região mais baixa do mapa e a figura do sol escaldante pairando ali na sua região... Mais um dia com mais do mesmo. É hora de pôr um palito de fósforos na boca e deitar-se no chão para fazer descansar os ossos até encarar a labuta novamente. Ao fechar os olhos, ele não lembra do hit do verão, tampouco do preço da gasolina ou da cota do dólar. Mas as palavras da moça bem vestida inflamam seu coração como uma flecha acesa... Já se vão seis anos sem chover e com este que se inicia entramos pela casa dos sete e não tem notícia alguma, boa ou má, que lhe tire a perturbação de ver os animais morrendo de fome e sede, seus filhos passando precisão, sua mulher abalada pela imprecisão desses dias quentes, dessa vida seca.
            Poucos minutos se passaram... Ele já pega seu machado e prossegue em direção a mais labuta. Já longe de casa, para num morro, sente o bafo quente em seu rosto e observa o céu. De longe até que se engana... Parece que vê nuvens negras... Os urubus pairando acima não estão a adivinhar chuva; o que se cai por aqui é só morte, o que sobem são as almas cansadas de esperar...
            À noite, antes de dormir, ele traz seu rosto suado e o corpo esgotado. Ajoelha-se no chão e eleva sua alma ao Criador, pedindo que a previsão do tempo falhasse e que a provisão de fé atuasse porque o espírito estava pronto, mas a carne ressecada. Deita-se. O ar continua abafado. O calor persiste a noite inteira e antes que o galo cantasse, em meio a sonhos (um quê de devaneio ou de loucura), acorda esse sertanejo assustado: não pode ser! Mas era! Era a chuvinha alvissareira trazendo a boa resposta dos céus. Ele se estica a ver da janela. Não era sonho. Sua esposa e filhos comemoravam extasiados. De súbito, ouve-se um pedido de silêncio solene: Não vamos assustar a chuva, que ela, tímida, poderia recuar! E todos se calaram... assistindo àquele espetáculo atentamente.
Ninguém conseguiu mais dormir. O dia os encontrou em pé no alpendre, contemplativos. A timidez da chuva, se fosse real ou não, não sei; só sei que ela não recuou. Estava ali, suave, mas contínua. E como num passe de mágica o verde tomou conta das redondezas; mudou-se enfim essa estética do sertão! A mulher pôs um vestido florido e cozinhou com todo gosto. Os meninos não paravam de pular nas poças. O sertanejo deu-se folga; não apenas de trabalho: era sua alma que pela primeira vez em sete anos estava em folga. E do seu jeitinho simples de pensar... Não sei bem com que palavras isso se deu... Mas ele pensou: uns diziam ser a ciência; outros que a meteorologia já previa há tempos; foi apenas equívoco na comunicação... Mas ele... ele só sabia pensar uma coisa: “Eu chamo isso é de Deus”.
E continuava a chover...

PS:
Não sei plantar, não morei em sítio, nunca tive um roçado
Mas meu coração é sertanejo!


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