terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

CARTA A ZILA MAMEDE - José da Luz


Zila Memede
Rua da Saudade, 1985
Natal


Natal, 25 de julho de 2015.


Caríssima Zila,


A correnteza dos dias vai muito apressada...
E nas folhas da memória, já são longos os 30 anos de silêncio ruidoso e de saudade oceânica.
Decidi romper com a minha timidez de admirador anônimo, e concordei que o entusiasmo do instante me ditasse as palavras desta missiva. Mas, confesso-lhe que nem sei como organizar o seu fluxo verbal.
A propósito, embora esteja lhe escrevendo somente agora, espero que releve a minha escrita sem molejo, pois desejo que esta seja a primeira de muitas outras correspondências entre nós.  
Depois de todos esses anos longe de nossa terra potiguar, principalmente de nossa ainda tão ensolarada capital, tentei, mas não foi possível antes, muito menos agora, encontrá-la na Rua Trairi, nem na Biblioteca Central da UFRN, ou mesmo na Praia do Meio.
Separados pela profunda distância do espaço-tempo, me aproximei de você através de seus livros. Acredito que o tempo se perpetua na linguagem. Assim, fiz das páginas de seus livros o calendário de meus dias. Que belas páginas! Que belos dias!
Cronologicamente, revivi sua estreia no mundo das letras com o livro de sonhos e sonetos Rosa de Pedra. Em Salinas, vislumbrei os ares e os mares, os rios e as ruas, pela retina reta e fina da poeta emergente (muito além da gramática!). Com O Arado, acompanhei seus passos oníricos de criança em meio às cercanias bucólicas do sertão. Mais adiante, uma virada formal redireciona-lhe a linguagem e o inventário poético, num salto qualitativo, em Exercício da Palavra. No auge dos cinquenta anos, o livro Corpo a Corpo me revela a luta lúdica e estética de sua maturidade poética. Engenho e arte a nós legados como Herança.
Verdade seja dita, na leitura de suas obras, os olhos de minha alma passearam sobre os signos-pedra, mergulharam nos signos-água e voaram nos signos-vento. Alumiado, descobri em seus versos que a língua materna, aos ouvidos de nossa gente, é uma canção terna e eterna.
Não me censure o arroubo de minha espontaneidade. Talvez esteja sendo ousado, ou mesmo abusado, pelo atrevido e íntimo coloquialismo. São coisas de minha confessa e sincera fascinação.  
Fico imaginando como os jovens, em especial os potiguares, estão deixando de vivenciar uma experiência bacana e inesquecível: a leitura dos escritos poéticos de Zila Mamede. Digo mais, uma poeta que estava entre as preferências literárias de Carlos Drummond de Andrade. Uma poeta de alma sertaneja, conquistada inclusive pela amizade de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Aqui na província, costumava prosear com Câmara Cascudo. Certamente, ao pôr do sol, o historiador e a poeta continuam conversando além do horizonte...
Como eu gostaria, saudosa Zila, de alongar o fio destas linhas. Porém, a minha vencida timidez resolveu me render. Diferente de Drummond, a minha luta vã com as palavras não alcança a manhã. Mesmo assim, acredite, se essas palavras têm algum brilho, esse procede da autenticidade de meus sentimentos.
Enfim, não sei quanto tempo você ficará nesse lugar paradisíaco. Talvez os dias aí sejam de feliz eternidade. Entre livros e anjos. Creio que a pátria do(a) poeta é onde ele(a) tomba com sua saudade. Novos mares, novos ares.
Evocando da Antiguidade as palavras de Cícero, “a epístola é um diálogo entre ausentes”, eu sou contrariado em minha vontade ao colocar um ponto (provisório!) logo adiante. Desejo muito, muito, muito repetir este contato. A sua ausência sentida não me faz solitário. Pena que as minhas palavras não traduzam todo o sentimento de minha admiração.
Queira Deus, então, que eu seja digno de sua inestimável amizade.
Com respeitoso afeto,
José da Luz Costa

Extraído do livro Cartas Para Zila Mamede


  • Autor/ Organizador: Kamyla Alvares Pinto, Marize Castro, Francisco Wildson Confessor
  • ISBN: 987-85-425-0656-3
  • Ano de publicação: 26 de Outubro de 2016
  • Linha editorial
  • Coleção/ Série
  • Tipo de publicação: Digital
  • Formato/suporte: E-book - PDF
  • Número de páginas: 179
  • Palavras-chaves: Mamede, Zila, 1928-1985 – Correspondências, Cartas brasileiras, Literatura brasileira
  • Link para baixar o livrohttps://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/21450
  • Sinopse: O livro digital "Cartas para Zila Mamede" é resultado de um projeto da Edufrn de 2015, idealizado para homenagear a poeta e bibliotecária por ocasião dos 30 anos de sua partida. A obra reúne 44 cartas de escritores, alunos, professores, bibliotecários, pessoas que conviveram com Zila e leitores de sua obra poética, que compartilham o sentimento de saudade e de admiração por ela. O projeto gráfico do livro é de Rafael Campos e conta com fotografias do acervo pessoal da pesquisadora e artista plástica Angela Almeida.

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