terça-feira, 26 de março de 2013

VELHO XERETA - Ricardo Dantas


(Trecho do capítulo “Velho Xereta”, do romance “Meia Pata”, que será lançado em maio de 2013)

VELHO XERETA


- Tá indo pra onde, Velho Xereta? – perguntou Sapo ao ver o caçador com jamachim nas costas, cheio de mantimentos, um terçado pendurado na bainha, o revólver preso no cinto e uma espingarda de dois canos calibre trinta e dois.
- Vo-vou buscar ca-casca de qui-quina quina na-na serra do Perdido! – Velho Xereta parou perto da equipe que se preparava para ir abrir a picada.
- O seguinte é este Xereta, vai pernoitar por lá véi? – Raul estava curioso, como todos os outros.
- Cuidado pra não se tornar o segundo perdido, viu, Seu Xereta! – Sapo tirava uma brincadeira com o velho – Vai ser difícil chamar a serra de “Perdido Perdido”! – todos caíram na gargalhada com a piada do sarrista.
- Na-não vou me-me perder na-não. Ma-mas por via das du-dúvidas, sempre é bom sa-sair preparado pra andar na mata... – Velho Xereta era um homem experiente. Não subestimava a floresta, como não superestimava a si próprio.
- Quer que eu vá com você, Seu Xereta? – Manel se ofereceu para ajudar o caçador na jornada, também porque não era bom de facão pra abrir picada, e não faria falta para o resto da equipe. Como sempre trabalhou identificando árvores nos serviços que apareciam, o terçado nunca fora seu forte.
- O-o-o que-que é isso rapaz?! – Xereta, irritado, sentiu-se ofendido – Na-na-na-não preciso de babá não! – todos riram com a bronca que Manel pegou do caçador – E eu volto ainda ho-hoje. Tão pensando o quê? Que o velho na-não dá conta do-do recado mais é?!
Velho Xereta ajeitou o jamachim nas costas e saiu em disparada. Todos ficaram comentando o quanto Xereta era corajoso. Duro na mata! Bom de terçado e de fome não morria. No seu jamachim levava sal, açúcar, um pacote de café, um pacote de sebo de porcão do mato, todos os itens bem embalados. Também fazia parte de sua bagagem um bule, uma caneca, uma frigideira pequena, um recipiente de couro de boi com dois litros de água e uma grelha que possuía as dimensões da boroca de cipó.
O jamachim que Velho Xereta carregava era de própria confecção. Tinha aprendido com um índio da etnia Taurepang que ficou morando na comunidade dos castanheiros por dois anos. O Taurepinga, como todos o chamavam na vila por beber muita pinga, mostrou-se um ótimo artesão de cipó. O jamachim era firme, feito sob medida para ficar bem acomodado nas costas do caçador.
Ronaldo sentiu-se orgulhoso ao ver aquela cena em que seu pai seguia sozinho pra floresta, assim como todos os presentes exaltando as suas habilidades. Ronaldo possuía algumas capacidades mais apuradas que seu pai, mas reconhecia nele o grande professor da arte de sobreviver da floresta. Realmente Xereta era referência e respeitado pela vida que escolhera.
O caçador pegou o picadão antigo e seguiu rumo à serra do Perdido. Xereta em vinte minutos chegava a andar um quilômetro. A previsão era de chegar cerca de meio dia na base nordeste do morro, pegar uma caça, almoçar, descansar um pouco, coletar as cascas por volta de cinco e meia, e seis horas retornar para a sede. Porém, seu objetivo consistia em alcançar toda a equipe no serviço, que estava realizando abertura de picada, e voltar com eles para a sede. Sabia que, para cumprirem a meta de trabalho estabelecida pelo Cláudio, teriam que trabalhar até quando começasse a anoitecer.
Ao longo do percurso, Xereta tomava água de raízes de imbaúba e cipós d’água. Quando encontrava um igarapé sem vestígios de que os porcões tivessem “fuçado”, bebia água usando sua caneca. Aquele trajeto era tão conhecido pelo caçador que conseguia evitar os barrancos íngremes e a mata mais fechada com desvios, e assim economizava tempo no percurso sem se desgastar tanto. Pouco antes de meio-dia havia chegado à base nordeste da serra do Perdido.
Como era costume do caçador, organizava todo o local onde iria almoçar para depois ir caçar. Limpava uma área com seu terçado, cortando varas e arvoretas. Juntava algumas pedras e as organizava em círculo para fazer o fogo. Madeira não era problema na floresta. Muitos galhos e cascas de árvores serviam para fazer uma fogueira respeitável.
Enquanto Xereta arrumava um local seguro para pendurar seu jamachim, percebeu que algo estava próximo. Olhou a sua volta e ficou em alerta. Sua espingarda estava encostada em uma pedra uns cinquenta passos de onde se encontrava. De súbito apareceu uma onça vermelha descendo os pedrais na base da serra, vindo em direção ao Velho Xereta. O caçador havia se distraído. A distância entre os dois era de setenta passos. No entanto, a espingarda estava justamente de encontro com a onça. Xereta não tinha outra opção. Tinha que enfrentar a onça. Deu um grito o mais forte que pôde. A onça ficou em postura defensiva, deus dois passos para trás, porém rugiu alto e forte, esticando toda a pele de seu focinho dando espaço para suas enormes presas. Continuou avançando lentamente em direção ao caçador que não saia do lugar.
 Xereta pegou um galho grande e começou a bater no chão e nas árvores a sua volta. A onça novamente ficou na posição de defesa, mas ao invés de dar passos para trás, ela iniciou um trajeto lateral rumo a sua presa. Xereta percebendo que não tinha mais opção sacou seu revólver e esperou a aproximação do predador. De nada adiantava atirar nela a mais de quinze passos. Seria desperdício de munição, e ele possuía apenas seis.
 Sem contar que como a sua arma era muito velha, alguns projéteis poderiam falhar. A onça aumentava o ritmo e se encontrava a cerca de trinta passos do caçador. Se Velho Xereta estivesse com sua espingarda, um único tiro seria suficiente para dar cabo do grande felino naquela distância. Mas não tinha tempo para se lamentar. O revólver tinha que bastar! Para garantir, sacou o terçado de dezoito polegadas. Lembrou-se que vinte anos mais jovem, tinha matado uma onça parda com facão. Mas aquela onça estava muito velha. Esta, a sua frente, tinha o vigor e força de um animal jovem e saudável.
O predador estava a vinte passos. Xereta pensou em atirar na esperança de que o grande felino se assustasse com o estrondo e fugisse. Mas pelo comportamento da onça, o caçador percebeu que ela nunca tinha sido atirada, ou seja, nunca tivera contato com ser humano antes. Se a bala não acertasse seria desperdício e, daquela distância, as chances de acertar um tiro eram poucas. Xereta sabia que cada projétil era fundamental para garantir sua sobrevivência.
A onça deu mais dois passos e parou. Estava a dezoito passos. Por um momento Xereta acreditou que ela tivesse desistido da investida, e para tentar afugentá-la começou a gritar feito um louco.
- Ve-venha! Ve-venha! A-a-amaldiçoada! Ve-venha! Tá com medo do ve-velho?! Ve-venha!
A onça esturrou de forma ameaçadora, assumiu uma postura ofensiva e avançou ao encontro de Xereta. O primeiro tiro falhou! O segundo também! A onça estava a dez passos! Xereta deu três passos para trás enquanto deflagrava mais dois tiros. Um deles acertou a onça que vacilou, mas o tiro não fora fatal. A onça estava a cinco passos de Xereta que atirou e falhou! A onça deu o bote. Velho Xereta saltou para o lado o mais alto que pôde e atirou! O felino trombou nas pernas de Xereta que foi lançado sem equilíbrio, caindo no chão como um pacote flácido. A predadora rolou por entre folhas e galhos, e agonizou seus últimos suspiros. Xereta caiu com as costelas sobre uma pedra pontuda. Não conseguia respirar.

Ricardo Dantas
Biólogo e escritor


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