sábado, 5 de janeiro de 2013

DONA JULIETA - Aldenir Dantas

Aldenir Dantas
 Sempre foi uma mulher muito respeitada em Mericó. Ainda jovem, ficou viúva, com três filhos para criar, mas trabalhou por dois homens e jamais lhes deixou faltar o sustento e ainda lhes deu, como pobre, uma boa educação. Eram já três rapazotes educados, obedientes e trabalhadores, que muito ajudavam a mãe na labuta diária.
...
Dona Julieta abastecia as bodegas das redondezas, a cantina da escola e o mercado de Mericó com solda preta, sequilho, puxa-puxa, cocada, beira seca, raiva, alfinim, enfim, todas essas guloseimas que naqueles tempos eram, genericamente, chamadas de vendagens.

Era forte como um jogador de futebol, baixinha, atarrachada, meio avermelhada e, de voz estridente, sempre tinha uma resposta na ponta da língua. Não demonstrava a menor disposição para conversa comprida e seu buço acentuado evidenciava-se ainda mais por estar, quase sempre, suada. Numa discussão acalorada em torno de uma transação comercial, com um cliente ou fornecedor, sempre levava vantagem. Ao vencido, cabia o consolo de sair resmungando às escondidas:

- Com mulher de bigode, nem o diabo pode!

E com ela, a coisa era assim mesmo. Para defender a prole e ganhar o pão de cada dia, não media esforços. Era comum vê-la comprando goma pela casas de farinha da região, carregando lenha para alimentar o forno, trabalhando e botando os meninos para trabalhar no fabrico das vendagens. E como se não bastasse, quando chovia, ainda cultivava um pequeno roçado num pedaço de terra herdado do marido, nas proximidades da cidade. E, assim, no tempo da colheita, nunca lhe faltavam em casa milho, feijão, fava, jerimum... Coisas que se cultivava naquela região.

Diziam que era tão controlada, econômica e boa comerciante que tinha até dinheiro guardado no colchão. E ocorreu que, depois de um ano bom de inverno, quando teve até de contratar trabalhadores para cuidar do roçado, usou suas economias para mudar de casa. Trocou o casebre de taipa da rua do motor por uma casa na rua velha, com mais espaço para os meninos e uma cozinha enorme, ideal para o seu trabalho. Era uma daquelas casas centenárias, muito comum em Mericó, com grandes quartos escuros, chão de tijolos, longo corredor e tão alta que, dividindo-a ao meio, daria para fazer um primeiro andar.

- Comadre Julieta, a senhora tem coragem de morar naquela casa? Ninguém demora nela. Dizem que aparecem umas visagens por lá... Deus me livre!

- Comadre Maria, eu lá tenho tempo prá me preocupar com visagem! Eu tenho mais o que fazer, comadre!

Foi a realização de um sonho morar numa casa tão espaçosa, confortável e bem mais perto da clientela. Sua primeira providência foi construir um bom forno no quintal passando, assim, a produzir cada vez mais.

Mas não demorou muito e as advertências da comadre começaram a fazer sentido. À noite, ouvia passos pelo corredor e outras estranhezas como portas abrindo-se ou fechando-se e até barulho de gente destampando o pote e mergulhando o caneco para tirar água. Sentia medo, arrepiava-se, mas deixava pra lá. Fechava os olhos, rezava e, dominada pelo cansaço, adormecia. No dia seguinte, preferia fazer de conta que não acontecera nada, para não assustar os meninos.

Numa véspera de feira, já passava das nove da noite, os meninos dormiam enquanto ela cochilava escorada na grande mesa da cozinha, mobiliário que, pela cor escura, peso e tamanho avantajado devia está ali desde a construção da casa. Esperava a última tachada de sequilhos que assava, quando teve a atenção chamada por passos vindos do corredor.

Eram passos lentos, acompanhados de leves estalos, como os de uma pessoa idosa usando sandálias de couro. Sentindo-se arrepiar dos pés à cabeça, dona Julieta ergueu lentamente o rosto, olhou em direção ao corredor certa de que, em instantes, alguém apareceria. Não apareceu ninguém, mas a porta que separava a cozinha do quintal, apenas encostada devido ao trabalho ainda por fazer, aos poucos foi abrindo-se com o seu tradicional rangido por falta de lubrificação nas dobradiças.

Arrepiada e trêmula, diante daquele fato inusitado, foi somando um misto de medo e raiva: medo, por se tratar de coisa do outro mundo e raiva por vir tirar o seu sossego e atrapalhar o seu sonho, depois de tanto trabalho, tanto sacrifício...

A porta lentamente movia-se, enquanto ela alterava a respiração, acendia as narinas, tremia, suava e ficava cada vez mais avermelhada até que, num ímpeto, pulou do tamborete e com os olhos arregalados gritou:

- Olhe aqui...! Sua alma penada ou, seja lá quem diacho você for! Suma da minha casa! E suma já! Senão eu dano-lhe um padre-nosso no rabo que você não acerta nem com a porta da saída!

Dito isso, sentou-se trêmula, como o coração em disparada, esbaforida... A porta bateu violentamente, causando-lhe novo susto e o silêncio voltou a reinar.

A partir daquela noite, naquela casa, movimento e barulho ainda ouviu-se muito, mas só de gente desse mundo. 

=====> Da série



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