DOR INFINITA
A morte de uma criança causa alvoroço ainda maior quando a babá suicida é a responsável pelo ato. “Oh!”, gritam os menos desavisados. “Você vai ver esse desenrolar?”, perguntam as beatas acostumadas a se benzer sempre que se deparam com um desvio humano desse tamanho. “É coisa do diabo”, dizem, sem largar o terço que empunham como espada.
A mãe urra de dor. Seus dois descendentes acabam de ser eliminados do mundo dos vivos. Por mais que se trate de um ambiente de classe média, a média da maldade permanece a mesma, independentemente de haver ou não o que comer.
Canção de Ninar começa pelo fim trágico e retorna aos preparativos para contratar uma trabalhadora que permita ao casal continuar trabalhando. Imigrantes, sim — desde que estejam aptas a chamar a polícia ou a ambulância caso as crianças, ainda não assassinadas, corram risco de morte.
Ninguém sabe o filme que passa na cabeça daquela que foi escolhida para a função de babá. Aparentemente, tudo deveria se encaixar na responsabilidade de dar prosseguimento à vida, e não o contrário. Todavia, as curvas dos acontecimentos despertam a vontade de permanecer lendo. “Viajar”: esse é o termo mais usado por quem busca viver realidade e fantasia simultaneamente.
“Aqui estou”, diz o outro que espia devagar a família montada como se fosse um palco onde seriam encenados os infanticídios. Pai, mãe, avós… O menu de personagens está completo. Há ciúmes e interferências da famosa “colher” que se mete entre marido e mulher. “Tão lindos”, pensa a babá, sonhando em estrangulá-los assim que não conseguir lidar com suas fantasias de fazer parte de uma família equilibrada.
O cotidiano instiga o arrependimento da mãe, que sente estar sendo devorada pelos pequenos, carentes de sangue branco. Sugam-lhe os seios, a paciência, as forças. A rotina do lava/enxuga/passa tira seu brilho: escrava disfarçada pelos hormônios maternos. E assim a vida sonhada torna-se pesadelo. A repetição atrofia os pensamentos. Onde antes existia racionalidade, abrem-se desvios para futilidades: urinou, defecou, bocejou — e tome irritação. O corpo deformado pelo suga-suga já não encontra vergonha em mostrar seios flácidos e caídos; o que importa é sobreviver cumprindo o papel que lhe fora determinado.
O antigo colega de turma não percebe seu tormento, mascarado pelos gritos da filha mais velha. O pequeno dorme, aguardando as garras que irão arrancá-lo do sono inocente para o eterno. Parece até dizer: “Que seja cumprida minha sina de viver pouco”, enquanto ressona nos minutos que ainda lhe restam.
O medo de perder esses “senhores” a aterroriza. Um cadáver, em vez de uma criança, lhe vem à mente. A diferença está apenas na capacidade de se locomover. O sangue estacionado apodrece rapidamente. “As bactérias comendo meu filho precisam desaparecer, enterradas logo”, pensa. “Para que não reste, aos meus olhos, a imagem da putrefação.”
A fada transforma-se em bruxa ao tomar posse das chaves da casa. Ninguém para vigiá-la; entra o bel-prazer de causar desprazer. Mas antes é preciso conquistar a confiança do casal: prega botões, lava cortinas amareladas pela nicotina tão comum em casas de fumantes. O carrasco torna-se indispensável.
Para justificar o infanticídio, surge a menina malcriada, esperneando em praça pública e trazendo vergonha para quem não tem domínio — mesmo sendo paga para isso. O leitor começa a ter motivação para ficar do lado da assassina. Pobre, trabalhadora e ainda ter que aguentar a birra de uma menina magra, feia e cheia de querer. Há uma certa simpatia escondida na torcida.
Por outro lado, a mãe justifica o infanticídio ao desprezar a família em prol da carreira. A maioria age assim. Leïla Slimani apenas trouxe o que realmente acontece. Exagero ou não, a trama se mistura com a realidade de uma artista mulher, que fala do lado de quem recebe o sêmen do marido e tem suas entranhas rasgadas por uma criança saindo pelo canal.
Uma pitada de traição faz o leitor torcer pela dupla que se vê, profissionalmente, todos os dias. Não dá para pensar diferente numa relação aproximada entre sexos opostos. Vinho, relaxamento após a carga de compromissos… ninguém é de ferro. Um beijo distante do compromisso das alianças não faz mal, desde que ninguém saiba que algo a mais aconteceu. A vida continua trazendo surpresas além do planejado. “O que é que tem? Só um pouquinho. Não tira pedaço.” Recompõe-se o objetivo além do quadrado no qual se está inserido.
Na tarefa de casa, um aniversário organizado pela superbabá: crianças chegam, brincam e vão embora depois de terem sido envolvidas pela turma comandada por uma adulta com cérebro de criança. Há empatia, e elas adoram aquele aniversário nunca tão divertido. Choros por não encontrá-la no esconde-esconde e risos logo em seguida do “achei”.
A intimidade prossegue a ponto de as férias contarem com ela no rol de hóspedes. A Grécia com seus deuses encanta a babá que não pode entrar no mar: “Não sei nadar.” O marido procura ensiná-la a boiar. Seu corpinho, antes ignorado, é suspenso pelos braços peludos do patrão, enquanto a mãe vigia os filhos à distância. É acordo firmado entre ambos que ela aprenda até o fim da temporada.
A vizinha viu tudo — ou pensou ter visto um sinal de desordem no semblante da babá, algo que denunciasse a premeditação do crime. Queria fazer parte do noticiário; afinal, sua vida inteira no anonimato a deixava ansiosa pelos cinco minutos de fama. A televisão a entrevistando:
“Admirava-me o grau de cuidado que ela tinha com as crianças; sempre me cumprimentava ao entrar no elevador; calada, mas atenciosa, com olhar de respeito e admiração. Todos gostávamos dela. Agora percebo que não foi sorte do casal ter encontrado a babá perfeita.”
Comentário das psicólogas: “Quando perceber alguém muito perfeito, tenha cuidado: pode ser psicopata exercendo comportamento ensaiado e preparando o bote.”
A futura assassina está sozinha em seu apartamento alugado. Distante do que mais gosta de fazer, contudo é obrigada a seguir a legislação trabalhista: seu trabalho é seu hobby, e ninguém perguntou se ela queria folgar naquele sábado. As lembranças das férias, fazendo parte de uma família, trouxeram-lhe melancolia. Fica em casa, na companhia da sujeira e da obrigação de limpar depois de um mês de acúmulo, longe daquele marasmo com odor de umidade mofada. Está na idade de deixar os sentimentos virem à tona, sem se preocupar que, para tudo, há um preço: o preço de se perder na multidão; de apontar e ser atendida. Seu universo transita apenas no servir. É como um labirinto sem degraus para outra opção.
Lembra-se do marido morto, seco e pálido, deixando dívidas suficientes para que ela nem tivesse onde morar. A filha fujona nunca mais deu as caras — e, se deu, ela já havia sido despejada. Comeu biscoito num quarto de hotel durante semanas. As dívidas deixadas serviram para alimentar o fogo no quintal antes de sua saída. O pouco dos móveis restantes foi incorporado ao vuco-vuco do bairro. Uma mala de couro velho e uma bolsa desbotada serviram para levar suas coisinhas até o hotel familiar. Ali, imaginou o que fazer a partir daquela nova realidade. Adorava crianças só pelo fato de poder exercer poder e transformar menininhas em damas da noite em miniatura antes de os pais chegarem e verem a maquiagem carregada no rosto da inocente.
Seu passado, cuidando de uma velha nua na cama, veio com nitidez. Seus músculos foram bem aproveitados no manejo da milionária incapaz depois de uma queda. Sempre cuidou de gente — crianças ou idosos — e nunca soube fazer outra coisa, o que incluía também os afazeres domésticos. Não tinha sonhos, apenas trabalho. Tarefas a fazer e logo feitas. Rápida como ninguém, dava-se bem onde chegava, menos quando voltava para casa, longe de sua obrigação. Não sabia o que era diversão. Distante do universo da servidão, sentia-se um peixe fora d’água.
Por trás das crianças que tanto ama, existem os inimigos: os pais. Ela quer as crianças para si. Não aceita ficar longe, sabendo que os pais estão se divertindo com aqueles que ela tanto cuida. Tem receio de pedir para ficar no fim de semana. Precisa folgar, mas só ela sabe o quanto sofre por isso. Seu mundo está misturado com a vida deles. Ela nem sabe que o pai já não suporta tanta perfeição numa babá. Ele, que bebeu quando os filhos nasceram, percebe que está um degrau abaixo daquela a quem paga tão pouco.
Finalmente, visitam a mãe dele sem a babá. Aproximam-se mais dos filhos, um pouco esquecidos pelos compromissos de serem jovens e ambiciosos. Precisam dar o melhor de si enquanto têm energia.
A babá tímida está sendo comparada à Macabéa. Ela não sabe quem é Clarice Lispector e muito menos leu A Hora da Estrela, romance que deu origem a filmes, peças de teatro e resenhas nos principais jornais da época. Ela simplesmente é um objeto na mão do destino que resolveu se divertir massacrando-a. Até numa festa, ela se sente entediada a convite de uma amiga que mal a conhece e que a coloca sentada ao lado de um cantor fracassado que fala de música — e ela, então, percebe que não conhece nenhuma, a não ser a que canta para as crianças. Seu repertório se resume a trocar fraldas, dar mamadeira e colocá-las para dormir. Nunca pensou em ler romances além das historinhas infantis que reinventa a cada leitura, inserindo bruxas e homens maus contra as princesas, tentando incutir medo para trazê-las quietinhas.
Talvez seus impulsos psicopatas estejam sendo moldados por esses personagens, ou talvez sua solidão de viúva jovem, somada às ameaças dos credores de torná-la uma possível moradora de rua, a tenha transformado em uma assassina suicida. “Se eu não posso ser feliz, ninguém mais pode”, pensou ela de súbito, sem se dar conta de que estava pensando assim. Isso foi em fração de segundos. Sua índole boa está sendo deformada pelos acontecimentos cruéis. Seu pensamento iria descer ou subir para encontrar, como única alternativa, o suicídio. Ela nem sabe se ama a vida; apenas vive como um caracol em sua casca, sem abrir-se para o mundo. Pensa em ser demitida quando as crianças não precisarem dos seus cuidados. Adoece e, pela primeira vez, falta ao trabalho.
Está olhando para o termo “melancolia delirante”, que anotou no seu caderno depois que o médico assim a diagnosticou. Achou poética a expressão, e dessa forma passa dias enclausurada, olhando para o vidro da janela suja, sem vontade de limpar. E logo ela, que tem a limpeza como sua maior qualidade, deixa estar. Dorme, acorda, vai ao banheiro e pouco se alimenta.
A surra que deu na filha vem-lhe à mente. Lembra-se da humilhação de vê-la expulsa por mau comportamento do colégio que poderia ser um trampolim para o sucesso da família. A patroa, que pagava a mensalidade, sentiu-se traída quando soube que ela só fumava, em vez de estudar. “Surra bem dada”, pensava. Agora, a melancolia devolve-lhe o mesmo sentimento de abandono que a filha sentiu à época. Muitas histórias passam em suas lembranças e, para não sucumbir de vez, resolve emergir e regressa ao trabalho.
Precisa torcer para que o casal tenha outro filho; só assim seus serviços serão necessários. Mas eles não querem fazer a vontade da babá, e então…
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 01.12.2025 — 06h45.
vagamente inspirado em um caso real.
ResponderExcluirHeraldo, como você já deve saber, o evento inspirador desta trama ocorreu em Nova York, em 2012, quando uma babá de nome Yoselyn Ortega, matou duas crianças que estavam sob seus cuidados e tentou suicidar-se. Crime chocante bem trabalhado e ficcionado pela autora. Gosto muito de obras baseadas em fatos. (Gilberto Cardoso dos Santos)
Valeu Gilberto! Eu não sabia.
ResponderExcluirFoi uma semana de leitura.
A autora, além de uma boa escritora, é linda, jovem e simpática. Depois da leitura vi a foto dela e fiquei pensando: como uma pessoa tão jovem teve essa capacidade para escrever algo tão profundo...?
Descupe-me.
ResponderExcluirO correto: Valeu, Gilberto!