sexta-feira, 23 de agosto de 2024

FICOU LINDO NO SEU PÉ!

 

FICOU LINDO NO SEU PÉ!

Dois sapatos. Sobre eles, um menino os usa para se aproximar do cavalo, morrendo com uma estaca no coração. Abutres a postos para o banquete das vísceras, pois o couro servirá para fabricar sapatos.

A cena se repete todo santo dia, mesmo com a chuva fina, como agora, percebida apenas pelos pequenos movimentos dos escassos pingos nas poças formadas por sapatos, botas, chinelos e pés descalços.

O mau cheiro toma conta dos casebres ao redor da fábrica de calçados. Ali, gerações compartilham o mesmo ofício, passado de mãe para filha, já que os pais debandam em busca de cachaça, drogas e brigas.

Naquele ambiente, a morte é testemunhada, corriqueiramente, por crianças com idade de brincar na lama. Seus carrinhos, puxados por barbantes, consistem em latas de leite em pó furadas no meio das tampas, encarrilhadas, até três, com arames entre os furos para não cortar o barbante.

Piolhos, bichos de pé e lombrigas são termos comuns no linguajar da comunidade. Neste momento, duas fileiras de meninas passam segurando um caixão de anjo, para ser sepultado ali mesmo, sem atestado de óbito ou padre autorizando a entrada no céu. O organizador desses eventos fúnebres é um jovem de fala mansa, trejeitos exagerados e roupas coloridas. Ele vai à frente, com uma cruz enfeitada de flores, cantando louvores para os santos da sua crença. Os meninos apenas observam, pois essa função é reservada às meninas e aos afeminados.

No descampado, que serve de campinho, muitos sapatos são atirados, fora do contexto da vida. Acertos de conta são feitos, provocando outros desacertos no discurso de que a vida é assim mesmo: quem perdeu, perdeu!

Amores existem de forma tracionada pelo desejo do orgasmo fácil. Entre as pernas das meninas, sacos plásticos esperando a primeira menstruação, ou  um casaco, menos quente, amarrado na cintura para despistar um possível desabrochar fora do banheiro de casa. 

A procissão para em frente à vala, cavada às pressas. Desnutrição é tão popular quanto comer barro, e o barro ingerido chega junto com o pequeno invólucro humano para se juntar à greta da mãe natureza. Quase automaticamente, depositam o corpinho no chão molhado, enterram e vão embora, como gatos.

Nos dias seguintes, uma pequena multidão acorda no mesmo horário para se formar em frente à fábrica. As conversas servem para dispersar os pensamentos sobre a vida dura que levam. O apito soa, os portões se abrem e se fecham, junto com sorrisos, por dez, doze horas.

Mais cavalos são mortos, mais couros processados, mais modelos criados. Meia hora de pausa para a marmita já fria, no horário que chamam de almoço. O alçapão, de pegar gente sem esperança, permanece pegando e largando pessoas do exército de reserva. O mesmo labutar entretém as jovens até que a visão não presta mais para acertar a linha na agulha. Nesse momento, são encostadas, como falam por lá. Algumas desaparecem, não se sabe como, bem antes da aposentadoria. Dizem que é o dono mandando matar, para não pagar indenização trabalhista.

As sobreviventes passam dias no barulho do chão da fábrica e noites agoniadas, pensando que não podem se atrasar. Descanso? Nem no domingo, dia de torcer para que um dos seus não acabe na vala, como tantos outros, depois do jogo e da aguardente liberada.

Engordam depois do primeiro filho, e permanecem na mesma proporção a cada um que nasce, fora do planejamento. É tão natural perder um filho que já nem serve mais como tema de conversa antes da abertura dos portões.

Dizem que vai haver demissão. Pronto, motivo para perder o sono. Só sabem fazer aquilo, e quando tentam aprender outra coisa, a cabeça dói, obrigando-as a voltar para a canga já amaciada pelo uso. Alguém tem que comprar, senão, adeus emprego.

Uma madame estaciona seu McLaren no shopping. Caminha até a loja e leva dois pares, para abarrotar ainda mais seu closet cheio, com centenas deles, sem querer saber um terço da história que cada sapato carrega.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 24.08.2024 - 16h46min.


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