segunda-feira, 31 de julho de 2023

ROTINA DO ABSURDO

 


ROTINA DO ABSURDO


0 que é que você está olhando?, perguntou o escritor à garçonete que deixara de atender outros clientes para observá-lo rabiscando numa caderneta de bolso. Ela poderia ter saído de fininho, mas não, preferiu pedir licença para se sentar. Posso conversar um pouco ao seu lado? Ela não era feia tornando-se ainda mais atraente com a farda que consistia em deixar os peitos de fora. Sim, pode! Ela sentou-se, não ao lado, mas, sim, no seu colo. Desculpe-me, disse ele, mas acho melhor a senhorita sentar-se naquela outra cadeira. 

Ela foi se acomodar sem abotoar a blusa curta desculpando-se que aquele mostruário natural lhe dava o direito de ganhar hora extra. Se eu não ficar mostrando enquanto converso, perderei o emprego, disse ela sorrindo e dizendo que também estava sem calcinha. Soou como um apelo essa última fala da garçonete, comentou um que estava atento e continuou a interferir perguntando o que afinal ela queria conversar com o escritor? Não é da sua conta, respondeu a garçonete cometendo um erro de distração ao responder a um leitor ansioso. Agora eu fiquei curioso também, interferiu o escritor achando que ela só queria mesmo aproveitar o momento para tirar o extra. Que nada...! Quando ia começar uma discussão mais acalorada, congela para nova estruturação da cena. 

Voltando às marcações planejadas, o escritor encontra-se calmo escutando a garçonete. Eu queria me tornar escritora, disse ela massageando os seios e passando a língua entre os lábios. Corta, disse o diretor. É melhor a senhorita se vestir. Deixe-me entender! Isso é literatura ou cinema? Os dois, por favor, se vista. Só se vocês pagarem o resto do salário dela, gritou o dono do restaurante carregando um cabo de vassoura com uma garrafa pet cortada ao meio na ponta do pau... da vassoura claro, que tinha ido desentupir o sanitário. Tudo bem, podemos recompensá-la. 

Ah, sua traidora! Você diz em casa que vem trabalhar e fica com conversinhas com esses caras aí, disse o marido dela chegando e já desconfiando que ela fazia também programa. Calma! amigo, é um filme em que ela está participando, e o senhor chegou na hora certa. Dá para continuar a agredi-la? Quanto é o cachê? Uma cerveja. Daqui a pouco continuo, pois preciso tomar logo meu cachê. Enquanto ele não volta, você continua. Vai, fala! Bom, sabe, eu, bem, nem queria dizer... Então não diga, disse o marido potencializando a embriaguez com uma cerveja batizada. É que eu queria ser escritora e vim olhar o senhor escrevendo para ver como é que é. Corta! O que foi agora?, perguntou o marido tendo logo o pescoço cortado pelo segurança. O bruto pensava que “o corta” se referia a meter a navalha, e executou sem pestanejar. Que diabos!, reclamou a garçonete prolongando a fala: agora vou ter que lavar esse sangue. As outras garçonetes, querendo entrar na película, correram para carregar o homem morto, e eu, sinceramente, nunca tinha visto tantos seios à mostra, juntos. 

Gravando! Bom, a senhorita tem que optar por uma ideia volúvel porque se for ideia fixa será encaminhada para um sanatório como louca. Ela começou a chorar e isso fez o diretor continuar gravando, já que choro espontâneo gera retorno imediato. Passou-se um minuto, dois e ela chorando: buááááá. O diretor interferiu. A senhorita está chorando por causa do seu marido? Não, estou chorando porque esqueci o texto e de pintar as unhas dos pés. Snif, o que digo agora? Diga onde arranjou esse tipo de choro. Eu lia muita revista em quadrinhos e os personagens sempre choravam e fungavam assim, e eu era doida para colocar em prática algum dia.

Em relação a escrever, a senhorita tem alguma coisa pronta?, perguntou o escritor sem se deixar levar pelo choro ensaiado. O que tenho pronto e sadio é meu corpo... minhas pernas... Então aproveite elas para correr!, gritou o dono do restaurante em disparada com medo do touro que vinha entrando de porta adentro. Ali perto, estava acontecendo uma vaquejada e um dos bichos, escolhidos para ser torturado, estava querendo aparecer com seus chifres quebrando equipamento de gravação. 

Foi estardalhaço grande. Todos correram, menos o escritor e um tetraplégico que estava na outra mesa fazendo o papel de figurante. O touro, não se dando por satisfeito, saiu empurrando a cadeira de rodas do figurante que só fazia balançar a cabeça e os braços como de costume. Lá na frente, os cavaleiros, que saíram atrás do fujão, esporearam os cavalos em direção à pista de corrida. O animalzão, querendo ter uma visão maior de onde estava pisando, levantou a cabeça suspendendo a cadeira junto com o tetraplégico. O aleijado mal conseguia se segurar, ainda bem que viu os dois grandiosos chifres que serviram para aliviar seu traseiro que estava sendo forçado para uma entrada deselegante do cupim. 

Pega aqui, pega acolá, entraram no cercado e foi só poeira que não deu nem para saber quem corria atrás de quem. Quando tudo veio a se acalmar, deu para perceber que o cadeirante havia ficado bom do aleijo e corria, feito um atleta, na frente da poeira que o touro deixava. Desapareceram no horizonte, e como não havia ninguém para continuar a história, o escritor achou por bem encerrar o expediente fechando a edição com letras maiúsculas: FIM


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 31.07.2023 – 10h17min.




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