segunda-feira, 21 de novembro de 2022

DEVANEIOS SUADOS - Heraldo Lins

 




DEVANEIOS SUADOS


Começo o dia falando coisas que vieram junto com o meu passeio matinal. São oito mil palavras pisadas durante duas horas de caminhada, já que a cada passo que dou, tenho que inventar uma palavra junto à minha passada para ser colocada debaixo do tênis e ser esmagada.  

Fico treinando a mente para ver quantos sinônimos eu posso recordar ou inventar, mas o problema é que cada palavra requer uma imagem correspondente, e isso não é fácil. Quando não consigo me suportar de tanta cobrança, invento de correr, não porque goste, mas porque sou obrigado a fugir de mim. 

Mesmo durante essa fuga, chegam-me ideias estimuladas pela própria respiração. Antigamente eu contava os passos que dava. Começava com dez e depois chegava a cento e cinquenta, parando vinte a trinta vezes durante o percurso. Agora, aperfeiçoei o método prestando atenção em pisar com a parte da frente dos pés e contar quantas vezes puxo o ar pelo nariz e solto pela boca. Normalmente aguento, a cada “pique,” vinte respirações até me dar por vencido. 

Nessa nova modalidade surgiu um problema, como se era de esperar. O nariz começou a ficar ressecado, e para não ficar molhando o dedo na boca e enfiando na “venta”, passo a mão na testa e em seguida me assoou levando, disfarçadamente, o suor para dentro sem que ninguém perceba a manobra. 

É preciso ser profissional até na arte da dissimulação. Cada pessoa que está por ali fica querendo saber em qual nível de educação fomos criados, e enfiar o dedo na boca e levá-lo ao nariz nunca foi ético.

O importante é conseguir alargar o vocabulário de uma forma ou de outra. Bruce Lee treinava até quando estava dirigindo, e eu, seguindo o exemplo do grande mestre, devo treinar até quando estou fazendo “força para baixo.” 

Treinei bom-dia em inglês, outro em francês, alemão, italiano... ao todo foram trinta línguas com o objetivo de impressionar. Odeio dizer a mesma coisa toda vez que encontro minhas colegas de trabalho, e, para variar, fui estudando idiomas que nunca pensei que existissem, até me aperfeiçoar, pelo menos, nos cumprimentos. 

Quando chego ao trabalho, todo mundo me rodeia para saber em qual vernáculo eu estou sendo cordial. Partindo da premissa que muitos só fazem ou aprendem com o objetivo de competir, em poucos meses até as merendeiras da escola estavam falando aramaico, e eu sendo apelidado de poliglota.  

Hoje, quando saio de casa, fico a imaginar como devo entabular conversa com as vendedoras. São poucas palavras tais como bom-dia, qual o preço? Obrigado! Isso já basta para conseguir treinar com gente estranha e que ela preste atenção à minha feiura, porque quem quiser olhos voltados para uma estética não padronizada nas passarelas, deve afiar a mente para, no mínimo, dizer algo que seja digno de atenção. 

São técnicas da arte da chama acesa. Quem precisa do outro para se sentir estimulado, tem que ser criativo. São horas e horas lendo, aprendendo e falando com as pessoas de casa, com o carroceiro, com mendigos, desde que sirvam para que eu consiga o objetivo de ser falante. 

Recentemente me peguei falando com um vira-lata. Disse tudo que um cão pode ter de doenças se viver na rua sem um tratamento veterinário ou banhos semanais. Em frente às latas de lixo, eu faço um discurso da utilidade que elas estão tendo para salvar o meio-ambiente, entretanto meu discurso não pode ser muito longo com as pessoas que foram derrotadas na última eleição. O idioma que eles entendem é o português do Brasil, e a frase tem que ser curta: “perdeu mané!”     

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.11.2022 — 12h30min





2 comentários:

  1. Os manés perderam, continuam amolando, mas nós ganhamos mais uma crônica afiada. - Gilberto Cardoso

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