quinta-feira, 22 de julho de 2021

ADEUS PARA O CÉU - Heraldo Lins

 


ADEUS PARA O CÉU  


Daqui de onde estou vejo nuvens misturarem-se com o mar. Dia chuvoso é sempre assim. O branco gelo mistura-se com o azul claro impedindo visibilidade. O sol deixou-me em baixas temperaturas nesse céu de problemas molhados a bordo de um pássaro prateado. 


Tento manobrá-lo para um pouso perfeito como tantas vezes fiz. Minha filhinha de três anos me espera para mostrar brinquedos novos. Olho em volta nessa turva claridade tentando enxergar sua mãe que me segue na lembrança trágica. A torre manda esperar. Pista molhada. Ainda há combustível. Piloto automático desligado. Desligo-me dessa pressão com um pouco de cãibra na mão esquerda. 


Esse menino que saiu do pé da serra com o sonho de ser aviador aqui está. Quantas milhas percorridas, quantos sonos interrompidos, quantos desafios superados. Esse fazer transformou-se em um trabalho de escritório com botões. Vista reduzida auxiliada por máquinas sensíveis. Será se haverá colegas para comemorar este meu último voo? Não percebi nenhuma suspeita de festinha. 


Agora somos três aeronaves esperando permissão para aterrissagem. Esse é o padrão imposto pela rotina. Sinto o olhar inquieto da Copilota. Sou a sua referência. Tenho que fingir calma. Controlo o meu respirar para não denunciar meu pulso acelerado. Já está na hora da aposentadoria. Cheguei à exaustão de tanto ir e vir, de tanto hotel, de tantas compras, de tantos amores desfeitos no voo seguinte... 


...Aqui quem fala é o comandante Marinho. Estamos aguardando ordem para pouso. Mais alguns minutos e estaremos em terra firme. Tudo sobre controle...


Perdi as contas dessa repetição inútil. Ninguém tem o controle. Quem está ansioso precisa ouvir mentiras para se sentir sossegado. Sou o responsável por vidas. Algumas crianças da idade de Clarinha querem continuar suas brincadeiras. Nem sabem que correm perigo de vida. Estar vivo já é, naturalmente, perigoso, ainda mais com esse mau tempo. 


Finalmente pista liberada. A chuva de granizo chegou. Arremeto. Ninguém pousa nem decola. A fuselagem é maltratada pelas pedras de gelo. Cada batida é na minha alma. Já consegui em outros momentos. Hoje estou debilitado pela sensação triste do fim de carreira. Mas vou conseguir... Senhores passageiros, estamos nos preparando para mais uma tentativa de aterrissagem. Mantenham a calma que logo estaremos em nossos lares... 


Agora são cinco aeronaves suspensas. Tenho a preferência. Equipes de bombeiros posicionadas, trem de pouso acionado, sinalizadores acesos, freios de emergência, socorristas...  


Parabéns pra você... sim, haviam preparado minha festinha de despedida. 


               

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 13/07/2021 – 07:42



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