quinta-feira, 9 de julho de 2015

OS ESFOMEADOS - Parte 1 (Rosemilton Silva)


Um velho, sem nome até hoje, rondava pelas ruas da cidade a procura de um resto de comida. Alguém penalizado lhe deu um copo de leite. Bastou esse favor para que a morte chegasse em um minuto. Morreu de fome ou de comida? Das duas coisas certamente.
Continuava o mês. Na esquina da Cooperativa, aonde os boatos chegavam mais rápidos que em qualquer outro lugar da cidade, a politicagem era o prato preferido, mas a fome continuava sendo objeto de comentários.
— Ouvi dizer que vão construir um açude lá pras bandas do sítio do doutor.
— Eita! É agora que nós morre afogado de tanto beber água.
Começava a caminhada em busca do trabalho. A procura da exploração do homem pelo homem, o que não era nenhuma novidade.
Na feira o comentário já corria solto.
— O doutô arrumô trabaio prá nois. Agora a coisa vai mudá. Tamo precisando é de trabaiá.
— Mais cum essa fome danada cuma é que nois vai ficá em pé?
E haja gente e jumento trabalhando para construir o açude. A campanha política já rolava solta na buraqueira. Nada se prometia sem antes obter a certeza do voto a favor depositado nas urnas das eleições que se aproximavam.
— O home tá ca gota serena, sorto nas capoeira a precura de voto. Tá dando imprêgo a todo mundo e nois tem é que votá nele mermo, num tem outo não.
Os boatos continuavam na esquina da Cooperativa em torno das fraudes nas últimas eleições e o que poderia acontecer nas próximas, com a fome do povo e a miséria rondando os lares da cidade e do campo, exceto nas casas de alguns abastados enriquecidos pela própria política e que estavam prestes a ficarem mais ricos. Era o ano de uma nova campanha eleitoral, tempo de vacas gordas. O povo continuava trabalhando para enriquecer mais ainda essa gente com o dinheiro dos impostos que deveria ser revertido para o próprio bem estar da população.
— Rapaiz, diz qui o barracão tá chein de fejão. O guverno mandô foi munto.
— É, mas num aparece esse bicho e o que vem prá gente num tem fogo da mulesta qui cusinhe o bixiga.
As conversas corriam com os adversários descobrindo tudo a respeito do assunto. O feijão preto, de primeira, era vendido a comerciantes da cidade e substituído no barracão por feijão macassar, que era produzido nas fazendas dos políticos.
— Danou-se! O fejão qui eu arrecibí essa sumana tava cum um gurgui da mulesta. Mais cuma os minino tão cum fome vai é assim mermo.
As pessoas continuavam, dessa maneira, enganando o estômago e a esperança de a chuva voltar. O homem do campo, mesmo que tenha dinheiro, nunca está satisfeito se diante de seus olhos não estiver o verde do feijão florando, o cabelo loiro do milho bonecando e o nascer do capulho do algodão.
— Aqui pode inté num fartá cumida, mais bom mermo é a gente ver o mio bunecano, o fejão fulorano e o argodão capuchano.
O burburinho na esquina da Cooperativa continuava. As prévias eleitorais já tomavam conta da pequena cidade, celeiro de deputados, governador, senador e prefeito da capital. Os mais afoitos e avessos a coronéis e majores, acreditavam ser a hora e a vez de derrubá-los. Lutavam com unhas e dentes no afã desse dia de glória que, na conjuntura atual, jamais conseguiriam. O “majó” Teodolino, título conseguido com o dinheiro do povo, estava para chegar a cidade. Um “rosário” de pessoas se preparava para falar com o “homem”. Mas antes de tudo isso aconteceram fatos que marcaram a vida da pequena cidade do interior.


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— Lá vem o “majó”!!!
Esse grito de guerra ecoava como uma bênção na cidade. Ele na frente, com seu eterno chapéu de “cowboy”, enorme, sombreando quase todo o corpo, seguido por uma procissão que se limitava a dizer amém a todo e qualquer gesto dele. Um grito em um; aperto de mão em outro; um abraço mais forte naquele que lhe poderia dar muitos votos na próxima eleição.
— Você viu, Zé do Bode? O “majó” deu um abraço cachorro da moléstia em Zeca Cafuringa. Também o homem tem prá mais de cem votos.
Rompe Ferro, um bêbado desses inteligente e revoltado, não admitia tamanho desaforo para sua carne sofrida da podridão da politicagem. Era assim que ele começava seus discursos no velho coreto em frente à matriz que tempos depois foi derrubado para dar lugar ao “progresso”. Os estudantes, profundos admiradores de Rompe Ferro, se dirigiam ao coreto e esperavam ansiosamente a fala. Ele fazia o charminho que os políticos costumam fazer. Nunca começava o discurso na hora marcada e mantinha sempre um copo com álcool, limão e açúcar como se fosse à água. Rompe Ferro dizia que a cachaça não lhe fazia mais o efeito desejado.
Contavam até que ele tinha sido um grande professor lá pras bandas do sul do país e que, desiludido no amor, saiu a percorrer o mundo em busca de um lugar tranqüilo que, segundo ele, jamais encontraria.
— Meus senhores e minhas senhoras. Tenho que dizer: e putas também. Esta cidade precisa de um homem que dê mais comida a todos nós...
E os estudantes entravam em transe, era um verdadeiro delírio. Aplaudiam. Assobiavam. Gritavam.
Os jovens eram os únicos assistentes e profundos admiradores de Rompe Ferro. Seus pais, comprometidos com os “deveres e o progresso da cidade”, devendo obediência aos coronéis e majores, não aceitavam que os filhos não estivessem presentes a “procissão” dedicada ao “santo político”. Por seu turno, o “majó” cobrava fidelidade e achava ridículo toda àquela platéia para um escória da sociedade.
À noite, na pracinha onde as moças rodavam sem parar e se divertiam entre um olhar e outro mais atrevido, os comentários giravam em torno das “pisas” que fulano ou cicrano levaram do pai por não ter comparecido a manifestação em detrimento do comício de um bêbado.
— Rapaz, Armínio ficou em casa de castigo e o pai disse que da próxima vez vai ser pior: é uma semana sem sair de casa e domingo não vai assistir ao seriado de Batman e Robin.
Zé do Bode, estudante atrevido em suas críticas, que tinha ampla liberdade do pai, um profissional que trabalhava como fotógrafo para o “majó” e os demais políticos, estava preocupado também com o futuro da cidade. Os pensamentos de Zé do Bode tinham o respaldo dos estudantes que começavam a se organizar em grêmios e centros recreativos, mas nenhum deles ainda tinha na garganta o grito de “Liberdade, Liberdade”.
O doutor Serrinha, sempre com as batas sujas do penúltimo, do último parto, vestindo-as uma por sobre a outra, era um gozador e não perdoava quem cometesse erros até mesmo de português, mas não tinha preconceitos. Afirmava sempre que não havia amigo melhor que o dinheiro e que só o vil metal era a verdadeira amizade.
O Bar do Ponto, onde os estudantes se reuniam para um papo puxado a cafezinho  — quando alguém pagava toda a conta — era o ponto principal dos encontros. Também era o local preferido do médico Serrinha. Aliás, o único médico existente no raio de mais de 50 quilômetros. Quando receitava alguém, quase sempre em uma das mesas do Bar do Ponto, exigia que o paciente fosse a farmácia comprar o medicamento e trazê-lo até ele para ver se estava correto o aviamento da receita.
— Com esses farmacêuticos não se brinca. Eles vendem merda por penicilina e a gente é quem se lasca, porque dá a consulta de graça e ainda fica com a fama de não saber nada, o que não é o meu caso.
Todos os políticos da cidade cobiçavam o doutor Serrinha. Ele seria o maior conquistador de votos e se quisesse poderia ser o prefeito com muita facilidade. Mas não gostava da política e em dia de eleição votava cedinho e desaparecia. Mesmo assim, muita gente perguntava quem ele indicaria para receber o voto.
— Todo político é ladrão. Está mais preocupado em roubar do que sentir de perto a fome do povo. Eles adoram essa seca porque isso vai enricá-los ainda mais.


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A difusora Cai Puru acabava de tocar a velha marchinha “Burro Teimoso”. O locutor, com aquela voz cavernosa de conquistador barato, anunciava o mais recente produto chegado a cidade.
— Sabonete life boi é bom prá péia!
O dono do anúncio, irritado com o fracasso do inglês do locutor e da publicidade negativa lida segundos antes pelos “potentes microfones”, saía do bar/sinuca/mercantil com vontade de esganar o dito cujo. Chegou à porta da “divulgadora” — como a grande maioria costumava chamar — e esperou o novo anúncio.
— Sabonete life boi é bom prá péia.
— Péia não, imbecil. Peeeeellllllllleeeeeeeeeee!
— Depepção. Retificano: peeeeeelllllllliiiiiiiiiaaaaaaaaa!
A emenda saíra pior que o soneto. Na pracinha, os estudantes já tinham tomado conta do “péia”. E não se falava mais em outra coisa.
— Lá vem o “majó”
— Dá um banho nele com sabonete life boi que é bom prá péia!
Foi o bastante para os cabras do “majó” travarem uma verdadeira batalha com os jovens na quadra de voleibol, toda de areia e cercada por uma pequena mureta de cimento.
Corre daqui. Corre dali. Ninguém segurava ninguém.
— Esses cachorros da moléstia parece que têm sebo no corpo.
— É nada. É que todo mundo tomou banho com sabonete life boi que é bom prá péia.

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A entrada triunfal com banda de música conseguida da Associação dos Escoteiros, que sequer sabia de sua existência, se dava com todo o furor de um verdadeiro imperador. Foguetões subiam. Era o dinheiro do povo que mais uma vez estava sendo gasto em coisas que não traziam nada de bom para a terra. Era o mesmo dinheiro que deveria estar matando a fome que assolava em toda a região.
Gritos eufóricos e raivosos misturavam-se cortando o ar sereno e calmo há poucos minutos. Acabava-se de uma vez por todas, naquela noite, o romantismo do piscar de olhos entre moças e rapazes que, aliás, não se atreviam a se darem as mãos e rumarem num passeio tranqüilo que a cidade oferecia a qualquer hora da noite.
Naquela hora o que contava eram os comentários da esquina da Cooperativa; o que a Câmara faria ou deixaria de fazer para o “engrandecimento” da cidade; os ataques aos adversários que também estavam loucos para se elegerem e conseguirem se apoderar do rico dinheirinho mandado pelo Governo Federal e que deveria ser empregado nas obras públicas.
Rompe Ferro triste, caminhava lentamente. Uma outra procissão, mais barulhenta ainda e só sufocada pelo espoucar dos foguetões, iniciava o seu ritual sob os olhares mais perplexos da gente adulta.
— Como é que pode, esses estudantes de merda quererem bagunçar o nosso comício? Vamos dar um jeito nisso. Vamos colocar esse bêbado, filho de uma puta, na cadeia.
Já no Coreto, após o sempre eterno ritual costumeiro, Rompe Ferro pegava o seu instrumento de trabalho: um cabo de vassoura com uma lata de óleo na ponta e um copo contendo a famosa mistura de álcool, limão e açúcar:
— Minhas senhoras, meus senhores e putas também. Nesta noite de tanto dinheiro gasto advindo do nosso bolso via órgãos federais, cabe a mim defender a quantos não podem levantar a voz em sua própria defesa.
Os estudantes deliravam. Aplaudiam. Gritavam e festejam com areia.
A voz de Rompe Ferro tinha a potência de um potente amplificador. Não se sabe se era a cachaça que lhe amplificava a voz ou a vontade e a sede de justiça. O silêncio entre uma frase e outra era sepulcral parecendo até que ali não tinha ninguém e só quebrado pelo arrastar de uma sandália, de um chinelo mas logo reprimido com um beliscão nas partes baixas, um chute na canela.
Lá de trás alguém grita:
— Lá vem a Polícia...
O comício continuava e Rompe Ferro, mal sabendo que seria levado preso, o que também não faria muita diferença para ele, dar asas as suas frases de efeito. O policial deu voz de prisão a Rompe Ferro. Nesse leva não leva, a trancos e barrancos, o bêbado era encarcerado até que a cachaça lhe saísse do juízo. Mas tudo sob o protesto dos estudantes.

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A continuar

PARTE 2: OS ESFOMEADOS II

5 comentários:

  1. Aguardando ansiosamente a sequência!

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  2. Leitura agradável e muito reveladora, Rosemilton. Parabéns! Pra nós que aqui residimos, tem um significado todo especial. Um mergulho num passado ainda meio presente no Nordeste.

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  3. É um verdadeiro mergulho ao ser fatal, textualiza o trato as inquietações do opressor e também do oprimido. É o Jogo “do racional pelo racional” por seara de ilusão dos iludidos, sem o reconhecimento, entendimento, eterno e sempre ilhado a si próprio. Finalmente caro amigo esta temática tem tudo haver com o nosso convívio ontem e nos dias de hoje com nova roupagem, somos todos racionais e precisamos viver, não é possível que “um dia” “uns esfomeados” parem de tanto comer. Só assim o oprimido irá comer.
    Jadson Umbelino

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  4. Gostei da riqueza na descrição dos detalhes e da pertinência do tema. À espera da segunda parte.

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  5. Rosemilton, deve sim publicar, gostei muito, retrata em período vivido por nós naquela região, também uma forma de recordar até da linguagem matuta usual da época que torna interessante os relatos. Vá em frente amigo, Neide

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