Vivemos uma realidade ímpar na
história musical brasileira. Na idade
média de nossa saga cultural, tivemos canções geniais proibidas pela
censura. Vem-me à mente “Cálice”, de Chico Buarque, denunciadora desse período,
e a representativa “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré.
Aquele era um tempo em que a música cumpria uma função social relevante. Seus
fins não eram puramente estéticos. A poesia, exuberante nas canções desse
tempo, dava asas ao clamor de um povo e não era subserviente a um
sentimentalismo medíocre. Não atendia a interesses mesquinhos. Depois veio-nos uma fase iluminista, vindicativa, em
que os artistas injustamente perseguidos foram elevados à categoria de heróis. Foi
uma época marcada pela liberdade de expressão. Mas a música foi perdendo
expressividade e desembocou, infelizmente, em temível libertinagem.
Ontem, um carro com um paredão
de som. Na carroceria, meninas. Pareciam ter entre 10 e 12 anos. A música perturbava
pelo volume alto. Eis o que ouvíamos:
“É ímpar, é par. (bis)
Se der ímpar você chupa
Se der par você me dá
Novinha, não sei seu nome
Mas agora vou falar
Inventar uma brincadeira
Que eu sei tu vai gostar
“É ímpar, é par. (bis)
Se der ímpar você chupa
Se der par você me dá.
[...]
Fiquei espantado. Antes de cantá-la, o vocalista disse:
“A gente vai brincar de par ou
ímpar, tá bom?”
O eu da música, a léguas de
ser poético ou lírico, tem como alvo alguém que ele chama de novinha. Pelo
adjetivo escolhido, dá pra ver que a idade é muito importante. Ser nova não é
suficiente: tem que ser novinha. Quanto mais nova, mais pueril, fácil de
seduzir e desejável. É uma novinha de quem ele sequer sabe o nome, mas que
importância tem o nome quando a criança é vista como mero instrumento de
prazer? E tudo deve ter a aparência de
brincadeira para que a novinha não perceba a cilada em que está caindo. A esta
novinha hipotética ele se dirige numa linguagem dócil, adequada à idade: “A
gente vai brincar de par ou impar, tá bom?” E há toda uma coreografia a ser
feita durante a música, incrementando mais ainda os aspectos lúdicos. O que é
dito poderia vir na forma de mensagem subliminar e já seria altamente
condenável. Mas não. Tudo é dito às claras e se é visto como inocente
brincadeira é apenas pelas potenciais vítimas.
A genérica novinha aqui
mencionada e seduzida tem sido evocada em várias outras músicas. Uma que fez muito sucesso dizia:
“Gostou, Novinha?
Ai, gostei!”
Enquanto ouvia o “É ímpar ou
par”, raciocinava: Se um de nós dissesse estas mesmas palavras a qualquer
garota entre 10 e 12 anos, poderia ser indiciado por pedofilia ou atentado
violento ao pudor. Cadeia na certa. O eu poético dessa música, mesmo analisado
superficialmente, não daria outra: é um pedófilo. No entanto, a Banda Grafith pode cantar isso livremente, inclusive quando honrosamente contratada por
gestores públicos, com recursos destinados à cultura.
A música, chocante e
preocupante para quem tem um mínimo de respeito à moral, é apenas uma amostra
do repertório que o Grafithão tem para oferecer à juventude. A Banda Grafith
não é a única que despeja em nossos ouvidos esses e outros lixos musicais. Esta
música faz parte do repertório de muitas bandas de sucesso. Há quem pague caro,
e à custa do povo, para trazer tais bandas. Talvez alguém diga que minha mente
está demasiado fértil, que se trata apenas de uma música e que nada disso vem a
ocorrer. De qualquer modo, há prejuízos:
termos chulos e expressões maliciosas são involuntariamente incorporadas
ao vocabulário de mentes em formação; há um estímulo à sexualidade precoce e
perda da pureza que deveria caracterizar determinadas fases da vida.
Fico pensando em crianças como
aquelas que seguiam na carroceria, culturalmente emparedadas, que crescem
diuturnamente ouvindo essas aberrações musicais e aprendendo a valorizá-las. Elas
desconhecem o que há de bom em nossa música. Em casa, na TV, no rádio e no
celular é o que ouvem. A música de verdade lhes parece bizarra e destituída de
beleza. Luiz Gonzaga, Chico César e Zé Ramalho, quando ouvidos, lhes parecem
patéticos e desprezíveis. Isso talvez explique, ao menos em parte, o alto
índice de gravidez na adolescência, a libertinagem sexual que caracteriza os
nossos dias, a perda de valores. Já imaginaram o potencial de depravação
contido em letra como essas? Trata-se de incentivo à pedofilia feito da maneira
mais escrachada, envolto em melodias que têm efeito hipnótico sobre nossos
jovens. Pergunto-me o que poderíamos fazer para mudar esse estado de coisas.
Para começar, os gestores públicos deveriam dar o exemplo, sendo criteriosos
quanto a quem contratam. As escolas poderiam fazer frente unida para combater esse tipo de cultura. Promotores deveriam tomar as providências. A censura, talvez, devesse voltar. Não para fazer como
antigamente, mas para impedir que tais bandas pudessem gravar coisas desse naipe. Os filtros deveriam visar conteúdos maliciosos e que
incentivam o consumo de drogas e a violência.
Se não fizermos algo a
respeito, o que já está péssimo há de ficar bem pior.
Meu caro Gil, tudo é uma questão de educação! Lamentavelmente temos ainda um país de mendigos, analfabetos e pseudos iluminados à frente de nossos destinos. É só olhar a educação que nos é servida nas bandejas do atraso!Durma-se com um barulhos desses! Parabéns pela reflexão!
ResponderExcluirCom exceção da volta da censura concordo com a sua reflexão. Estas músicas ferem os nossos ouvidos e declinam cada vez mais com a condição da mulher na sociedade. Como este estilo de música tem um poder comercial muito poderoso é ELA que todos nós ouvimos diuturnamente, em rádios, paredões e outros meios de propagação musical. Na Escola em que sou gestora este tipo musical não faz modelo. Não considero censura, mas ao termos oportunidade de trabalhar com crianças em período de formação pessoal e moral, optamos por oferecer-lhes músicas que nem sempre faz parte do seu convívio social. Francisca Joseni dos Santos - Professora
ResponderExcluir“No entanto, a Banda Grafith pode cantar isso livremente, inclusive quando honrosamente contratada por gestores públicos, com recursos destinados à cultura.”
ResponderExcluirParabéns, grande Gil, e ainda cobram que nós professores, pobres mortais em meio a essa avalanche de hipocrisia, sozinhos seguremos as pontas e sejamos exemplos e modelos de decência.
Grande Gilberto.
ResponderExcluirMuito oportuno o seu posicionamento.
Aristóteles Pessoa
É uma questão de solução beeem delicada: a questão cultural sempre foi levada em conta como "positiva", "Cultura é uma coisa positiva"
ResponderExcluirCultura é o acumulo de experiencias e suas consequências, é acumulo de conhecimento porém...sem juízo de valor. Então,a gente se vê frente a frente, ouvido a ouvido, diante destes valores acumulados, vividos e revividos sem um amparo que dê algum critério de seleção mais elevado. É uma pena que assim seja.
Muito bom o seu artigo!
ResponderExcluirPara mim o problema não está em quem compõe a música e sim, em quem promove e ouve. Não é de hoje que a múdia está colocando em alta músicas cada dia mais baixas e machistas. A culpa é de quem? De nós mesmos que permitimos em rede nacional que isso chegue até nós! Há outras letras que o vocabulário não é tão vulgar, mas a mensagem é a mesma: garotas fáceis. A tendência é só piorar... essa música é apenas no retrato disso.É preciso trazer mais cultura para escola, sem tapar o o sol com a peneira, essa é uma realidade que é preciso revertê-la com cautela e, ao mesmo tempo, ensinar nossos alunos a ter crititicidade na escuta. É essa geração que vai dizer não às gravadoras e os meios de comunicação que nos bombardeiam com tanto lixo!
É um grande estímulo a prostituição infantil. Estes camaradas de letras musicais neste estilo, ver o lado imediatista do sucesso, do dinheiro hoje, sem jamais pensar em canções que fortaleça o amor. Como por exemplo: "olhai pra o céu meu amor, vejo como ele está lindo"...e tantas outras. Infelizmente é a realidade da nossa sociedade, falta respeito, pudor, é a destruição do valor social. É apenas o começo. Viva os ocultos sobreviventes da boa canção. Parabéns poeta Gilberto pela abordagem do tema.
ResponderExcluirJadson Umbelino
Texto Magnifico poeta.
ResponderExcluirGilberto,
ResponderExcluirexcelente texto, como sempre.
eu o vi na madruga de hoje, que foi compartilhado por uma amiga fotógrafa que mora em Portugal [Renata Silveira].
...
rapaz, uma das grandes mazelas que permaneceu após a nossa Ditadura foi o "discurso" da censura, discurso esse ardilosamente cooptado por aqueles que a promoveram [como a Globo, Folha e apaniguados]. O resultado disso é que tudo quanto é porcaria e mazela agora é tolerado em nome da "liberdade de expressão".
somos todos nós defensores da liberdade de expressão. mas ela tem que vir atrelada à responsabilização social e Legal.
essa música não somente não deveria estar sendo executada por nenhuma rádio nem tv [pois que são concessões públicas, mesmo a de exploração privada]. e quem a compôs já deveria ter sido enquadrado na Lei por apologia à pedofilia. simples assim.
a questão não é proibir, mas responsabilizar conforme a Lei.
esse chorume intelectual não deve ser tolerado e não tem nada a ver com "moral e bons costumes". tem a ver com o direito da criança em estar a salvo desse tipo seboso de interação social. é uma invasão do espaço sonoro e deve ser desqualificado.
abração e parabas mais uma vez.
Desde sempre a evolução chama o furor masculino a espalhar seus genes por campo novo. Poderia citar desde a Bíblia até os "libertinos" do período anterior à Revolução Francesa. No Rio de hoje o acusado da vez é o funk, um dos mais odiados e perseguidos ritmos musicais, cujas letras pornográficas assustam os pais, mas atraem "até mesmo" a molecada de classe média alta. Longe de mim fazer uma defesa dessas músicas mas, como professor e cientista social cabe-me analisá-las. Seriam mais "indecentes" que as "indecências" do passado? Qual é o parâmetro? Por ser mais explícito e direto o discurso? Ele é aceitável quando é de duplo sentido (no estilo de tantos como Genival Lacerda)? Isso faz-me lembrar os inomináveis testes de fidelidade das TV abertas. Preferimos a sugestão à explicitação sempre que o assunto ronda o sexo e a sexualidade. A paternidade acalma o instinto evolutivo até que tenhamos uma chance, eu diria. Freud piraria com tal construção. Entre o monstro da "libertinagem" e a espada da censura abjeta, caminhos, em idas e vindas, desde sempre.
ResponderExcluirAgradeço a todos que deram sua parcela de contribuição e incentivo através destes comentários!
ResponderExcluirEstava numa clínica em julho passado. Uma tv ligada num desses programas matinais. De repente levantei os olhos, um tanto assustado, para o que acabara de ouvir: “A cada 17 minutos uma adolescente fica grávida no Brasil”. Com dados do IBGE, a matéria também mostrou que, em média, 17% dos nascimentos de 2011 foram originados de adolescente com idade entre 15 e 17 anos. A reportagem também abordou o alto número de abortos entre adolescentes. Bom trabalho jornalístico (créditos para Chris Flores e sua equipe) que buscou a contextualização da questão e visualizando que a maioria dos casos acontece na população de baixa renda e tem relação com a falta de estudo.
ResponderExcluirMas, Gilberto, esta outra nuance não foi explorada, nem nunca será pela grande mídia (que se alimenta comercialmente dela): a pornofonia. Seja ela humorística ou musicalizada, a pornofonia é a alma gêmea ou a versão “cultural” da pornografia. Aliás, estudos e pesquisas, em todo mundo, apontam a pornografia como elemento influenciador de muitos crimes sexuais praticados contra adultos, como motivador da pedofilia, etc.
Questão polêmica, sim. A liberdade da expressão artística não pode se evocada para agredir, humilhar, explorar, perverter, transtornar sexual e socialmente crianças e adolescentes sem que nenhuma censura se estabeleça. Aqui também há um espaço para ser ocupado pelo regramento legal e jurídico. Boa índole, decência, respeito ao próximo, ética e a “vida como o maior valor humano” são valores universais indispensáveis à convivência presente e ao futuro.
pelo o que ja vi textos desse nivel so acha aqui no apoesc
ResponderExcluirAmanda