O último
final de semana marcou o encerramento de mais uma novela das nove: “Avenida
Brasil”, de João Emanuel Carneiro, sucesso que foi assunto de revistas, redes
sociais e conversas do dia-a-dia nos meses em que foi exibida, por ter
“sacudido a pasmaceira” a que o horário nobre da televisão estava submetido nos
últimos tempos com uma trama que discutia vingança, ascensão social e
exploração infantil, numa linguagem “gente como a gente” e uma trilha sonora
para muitos de qualidade questionável. Mas não é esse o verdadeiro assunto
desse artigo, nem o final que muitos consideraram decepcionante em relação à
trama como um todo: trata-se de alguns comentários que observei nas ruas ou na
Internet, por ocasião do fato. Segundo eles, era ridículo haver tanta
repercussão em torno de uma novela, já que assisti-las, além de perder um tempo
que poderia ser melhor empregado com livros ou qualquer outra atividade, seria
dar audiência a uma emissora que há anos domina o cenário político e ideológico
do país e, portanto, uma forma de perpetuar seu poder. Houve ainda quem
dissesse que o gênero como um todo só produzia lixo e era “alienante”,
“desviando” a vista das pessoas da corrupção e outros males que assolam o país
e que as tramas estavam ficando “decadentes”, só faltando desclassificar como
“ignorante” ou “analfabeto cultural” aquele que se declarasse fã da novela ou
ao menos simpatizante, do tipo que comenta e teoriza sobre cenas. A repulsa não
só pelo folhetim que estava se encerrando como por todos em geral era tão
ostensiva que fiquei me perguntando se ela era justificada, ainda que não tenha
me chocado tanto.
Isso porque
qualquer um que frequentou uma universidade ou certos ambientes ligados à
cultura sabe que, nesses locais, citar uma novela, mesmo que seja só para
exemplificar uma situação ou fazer um breve comentário, na frente de amigos e
colegas, é um ato de coragem. Minisséries não são muito hostilizadas, pois
frequentemente se baseiam em obras literárias ou textos biográficos e têm muita
ênfase na análise política e social do período descrito, além de serem mais
“fechadas” em termos de sinopse, mas suas companheiras de horários mais
acessíveis não escapam de um tratamento mais hostil pelos assim chamados
“eruditos”. Os motivos são muitos: o fato de serem obras abertas à opinião do
público, podendo ser alteradas conforme a vontade dele (incluindo-se aí mudar
destinos e mesmos traços de caráter de personagens), suas tramas geralmente
serem maniqueístas, com o “bem” e o “mal” facilmente delineados e sem tanto
espaço para zonas cinzentas (geralmente aquelas que têm protagonistas com
atitudes mais dúbias costumam fracassar, embora “Avenida Brasil”, com uma
mocinha que chegou a humilhar sua ex-madrasta malvada com requintes de
crueldade, tenha sido uma exceção), muitas vezes fantasiando ou distorcendo a
realidade, principalmente ao descrever eventos históricos, correndo por fora
também a acusação de descaradamente manipularem os espectadores. Segundo essa
opinião, novelas são obras menores, escritas sem muito cuidado (o que se
refletiria inclusive no seu elenco, escalado mais com base em “rostinhos
bonitos” e com caras de ricos do que necessariamente em talento artístico) e
destinadas ao público menos escolarizado. Um exemplo dessa mentalidade de
“desdém” é que um diretor teatral, ao comentar o recente sucesso da atriz
potiguar Titina Medeiros numa novela da Globo que descrevia o universo das
domésticas, deu a entender que não considerava que esse fosse um aspecto tão
relevante na carreira dela e esperava que após o término desse trabalho ela
voltasse àquele que para ele era o seu “verdadeiro” lugar, o palco. Palavras um
tanto semelhantes às dos profissionais do teatro que censuram os atores que não
hesitam em trocá-lo pela televisão, ou que ironizam o interesse de “globais” em
suas atividades, como ocorreu quando Wagner Moura, consagrado como o vilão de
uma novela de Gilberto Braga e estrela do filme “Tropa de Elite”, resolveu
encenar “Hamlet” em sua versão integral.
Na verdade,
esse ranço contra a teledramaturgia não é de hoje: em outros tempos, palavras
semelhantes foram ditas contra os principais antecessores das novelas, o
melodrama (encenação teatral que misturava música e texto e era de alcance mais
popular que as óperas), o folhetim (história publicada em capítulos nos
jornais, geralmente de fundo romântico ou fantasioso) e a radionovela,
considerados como diversão do “populacho” ou, no caso dos dois últimos, das moças
românticas ou donas de casa. E essa vinculação os estigmatizaria para sempre
(tanto que o termo “melodrama” costuma ser usado para descrever filmes
lacrimejantes e associados ao público feminino, mesmo se não tiverem números
musicais), embora alguns clássicos da Literatura brasileira e mundial, como “O
conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas, e “O Guarani”, de José de Alencar,
tenham sido publicados em folhetim, e que a radionovela “O direito de nascer”,
do autor cubano Félix Caignet, tenha feito um sucesso sem precedentes ao inovar
a maneira de contar histórias, fazendo com que o público tomasse conhecimento
dos principais dramas da história antes dos protagonistas, e tenha sido
transmitida em outros países, inclusive o Brasil, onde teve êxito tanto no
rádio quanto na TV, tornando-se um dos maiores destaques da história da TV Tupi
nos anos 60, além de também ter inspirado pelo menos dois filmes. Como “filho
de peixe peixinho é”, e a telenovela alcançou muito mais sucesso que qualquer
um de seus antepassados, acabou por herdar as críticas que eles receberam com
uma intensidade ainda maior, sem mencionar que o período onde ela se firmou
como opção de entretenimento no Brasil foi nos anos 60, época de quebra de
paradigmas, censura e embate entre Esquerda e Direita. Como naquele momento os
“engajados” se refugiavam no teatro, encenando peças do grupo Arena, Chico
Buarque e Oswald de Andrade, os atores de televisão, veículo mais associado aos
grandes grupos econômicos, eram vistos como sendo de “Direita”, sentimento que
era reforçado pelas pressões da censura sobre os primeiros. Resquícios dessa
visão ainda persistem, mas são suficientes para justificar tais acusações, ou
que esse produto seja visto com desconfiança e cuidado?
Em termos. De
fato nem todas as novelas são boas, e muitas são claramente dispensáveis.
Também é verdade que os autores procuram manipular os telespectadores, que
muitas vezes eles irritantemente “esticam” a duração das tramas quando elas
estão tendo uma boa audiência, o que geralmente contribui para descaracterizá-las
e “embarrigá-las”, e quando se baseiam em obras literárias em não poucas
ocasiões são desrespeitosas com o texto que as inspirou. Assim como quem as
assiste deve estar ciente de que são obras de ficção e não se deve “seguir”
automaticamente tudo o que elas defendem (eu, por exemplo, não gosto das que são
escritas por Manoel Carlos, autor que no meu conceito banaliza a violência e o
adultério). E é necessário admitir que é preciso muita paciência para
acompanhar uma trama por tantos meses, e não faria mal algum se elas fossem
mais curtas. Contudo, é necessário ver o outro lado da questão. Não só a novela
é um aspecto cultural relevante do Brasil, sendo um dos produtos mais
exportados para o exterior e motivo para que os estrangeiros se interessem por
nosso país, como suas raízes aqui são híbridas. Chegando ao Brasil praticamente
junto com a TV (a primeira telenovela brasileira, “Sua vida me pertence”, foi
levada ao ar pela Tupi em 1951, um ano após sua inauguração, escandalizando o
público ao mostrar um beijo na boca em seu último capítulo), no início ela era
mais curta e geralmente se inspirava em textos clássicos ou de sucesso (entre
alguns dos romances adaptados para a TV brasileira nos seus primeiros anos
estão os romances “Os miseráveis”, de Victor Hugo, “Pollyanna”, de Eleanor H.
Porter, “... E o vento levou”, de Margaret Mitchell e “A canção de Bernadette”,
de Franz Werfel, esses dois últimos também adaptados de forma marcante para o
cinema), o que não poderia ser diferente numa programação que era marcada por
teleteatros. A ligação com a literatura era tão forte que entre alguns dos
novelistas dessa época e dos anos seguintes figuram nomes consagrados das
letras brasileiras, como Tatiana Belinky (autora da primeira adaptação do
“Sítio do Pica-Pau Amarelo” para a TV, na Tupi dos anos 50), Jorge Andrade
(dramaturgo de sucesso, chegou a adaptar duas de suas peças, “A escada” e “Os
ossos do barão”, para a teledramaturgia, além de ter criado outras
especificamente para esse meio), Dias Gomes (que teve um papel revolucionário
tanto no teatro quanto na televisão, através de obras como “O pagador de
promessas”, “O santo inquérito”, “O bem amado”, “Saramandaia” e “Roque
Santeiro”) e até mesmo Nelson Rodrigues, que escreveu três novelas para a TV
Rio no início dos anos 60. Além disso, algumas das novelas mais famosas de
todos os tempos foram inspiradas em livros, como “Irmãos Coragem” (que tinha
elementos das obras “A pérola”, de John Steinbeck, “Mãe Coragem” e “As três
máscaras de Eva”), “Selva de pedra (inspirado no romance “Uma tragédia
americana”, que já dera origem ao filme “Um lugar ao sol”)”, “Dona Xepa
(inspirada numa peça de Pedro Bloch já adaptada para o cinema)”, “A escrava
Isaura”, “A sucessora”, “Meu pé de laranja lima” e “Éramos seis” (adaptada para
a TV quatro vezes, duas delas na Tupi). Atualmente essas influências podem ser
menores ou até episódicas, mas não só elas ainda podem ser percebidas (a
própria história de “Avenida Brasil” parece se espelhar tanto na trama central
de “O conde de Monte Cristo” quanto em aspectos da história bíblica de José e
seus irmãos) como ainda costuma utilizar os serviços de grandes escritores,
entre eles Aguinaldo Silva e Maria Adelaide Amaral. Sem mencionar que
assisti-las pode ser uma maneira de analisar o vestuário, o comportamento e até
a linguagem de uma época, e que muitas vezes elas é que tomaram a iniciativa de
levantar entre a população discussões de temas polêmicos, como tráfico e
consumo de drogas, divórcio, união homossexual, repressão política e social e
até a importância da Literatura, não poucas vezes sofrendo conseqüências por
isso (nem todo mundo sabe, mas a esposa de Dias Gomes, Janete Clair, novelista
de sucesso não raro tachada de “alienada” e “fantasiosa”, foi uma das artistas
que mais sofreram com a censura, sendo forçada até mesmo a alterar a trama de
“Selva de pedra” na metade da história porque um de seus personagens seria
bígamo sem saber, e ainda teve de suportar intromissões que prejudicaram suas
novelas “Fogo sobre terra” e “Duas vidas”, porque elas questionavam os efeitos
que obras governamentais provocariam sobre a população das terras onde seriam
realizadas). Além disso, foram elas que revelaram para o Brasil inteiro
talentos como Lima Duarte, Glória Pires, Lídia Brondi, Toni Ramos, Regina
Duarte, Francisco Cuoco, Tarcísio Meira e Glória Menezes (mesmo Fernanda
Montenegro e Paulo Autran, que sempre foram referência no teatro e já haviam
feito grandes filmes, talvez não fossem tão conhecidos se não tivessem feito
novelas).
De forma que,
mesmo as telenovelas tendo deficiências, é um tanto precipitado julgá-las obras
menores. Ninguém é obrigado a vê-las, mas se quiser dar uma “espiada”, não há
mal algum que o faça, desde que mantenha sua mente aberta para outras formas de
entretenimento e aprendizado. Até porque pode ter a chance de encontrar cenas
arrebatadoras, como o momento em que João Coragem partiu seu diamante no final
de “Irmãos Coragem”, Sônia Braga subindo no telhado para pegar uma pipa em
“Gabriela’ ou sacudindo a pista em “Dancin Days”, o vôo de João Gibão sobre
Saramandaia fugindo de seus perseguidores e abrindo o céu para que voltasse a
chover na cidade castigada pela seca, o jovem José Inocêncio plantando seu
facão diante do Jequitibá Rei que era o marco inicial de suas terras em
“Renascer” e, por que não, a disputa melequenta de Fernanda Montenegro e Paulo
Autran em “Guerra dos sexos”. Até porque, para quem acha que escrever novela é
“besteira”, tente fazer um esforço para escrever uma história e imagine como
seria ter de desenvolvê-la de forma coerente e razoável durante meses. Garanto
que não será uma experiência fácil, e só por isso merece respeito.
P. S.: dedico
este texto a um de meus ex-professores, o hoje desembargador federal Marcelo
Navarro Ribeiro Dantas. Culto e cosmopolita, capaz de ler obras de renome no
idioma original e de cantar uma mesma música em mais de uma língua, ele me
ensinou muito em suas aulas não só sobre Direito Processual Civil e cultura em
geral, mas também, ouvindo-o comentar em sala as últimas novidades do gênero, a
não ter receio de admitir publicamente que acompanhava novelas, mesmo que não o
faça com a mesma assiduidade da infância. Obrigado por ter me ajudado a vencer
esse preconceito, Dr. Marcelo, pois mesmo que não seja um noveleiro de
carteirinha não me furto ao prazer de ver um capítulo ou outro de vez em
quando, agora sem tanta culpa.
Marcelo Navarro
Muito bem dito Renan! Realmente os eruditos miniminizam o valor histórico da teledramaturgia brasileira. Pessoalmente, não assisto novelas, por que tenho uma criança em casa que assiste desenhos animados e eu o acompanho, no entanto, já assisti e muito e não acho demérito algum assistir à novelas.
ResponderExcluirFrancisca Joseni dos Santos - Professora
De Odete Roitman a Max a novela mantem seu modelo arquetípico. É uma obra aberta e integralmente comercial, ou seja, o autor conduz a trama de acordo com a audiência, com digressões, muitas vezes absurdas e poucas vezes coerentes. Contudo é também um objeto de estudo e não deve ser desprezada. Eu pelo menos ainda sinto falta dos debates que travávamos na disciplina optativa de Teledramaturgia Brasileira, do curso de Comunicação Social.
ResponderExcluirDevemos lembrar que a televisão é um campo ideológico dominante, por isso mantem esse modelo "perfeito" de sociedade, segundo seus critérios. Isto é: Rico, pobre, branco, preto - cada qual no seu cada qual.