Recentemente,
ouvindo “Vaca Estrela e Boi Fubá”,
letra do grande poeta Patativa do Assaré, cantada por dois ícones
da música nordestina – Luiz Gonzaga e Fagner - retomei algumas
ideias de um texto que havia escrito já faz algum tempo e resolvi
publicá-las em homenagem ao centenário do Rei do Baião, Luiz
Gonzaga, com a intenção de ressaltar sua influência na
disseminação dos traços identitários de nossa nordestinidade.
As
identidades regionais são construções que se forjam em práticas
discursivas de diversas naturezas e que se concretizam em variados
gêneros textuais. Em “Vaca estrela e Boi Fubá”, é possível
encontrarmos elementos caracterizadores do que, comumente, tem-se
denominado de identidade nordestina, gestada anteriormente por várias
correntes discursivas, dentre elas, a euclidiana, a sociológica
freyreana e a dos romancistas da geração de 30.
A defesa
freyreana de um Nordeste nostálgico, olhando com saudades para um
passado farto e opulento, não encontrará nessa música a mesma
referência ao segmento social dos senhores de engenho nem as
práticas de sociabilidades ali existentes. No entanto, o sentimento
saudade é tão pertinente em “Vaca Estrela” quanto na
obra do sociólogo de Apipucos. Certamente, o saudosismo é aqui
recorrente porque as práticas discursivas anteriores a essa música
transformaram-no em um elemento caracterizador da identidade
nordestina, seja no litoral ou no sertão, não importa o local e sim
a relação sentimental do homem com a terra.
Em “Vaca
Estrela e Boi Fubá”, a ideia do homem telúrico apegado ao seu
“torrão natá” nos remonta ainda aos vestígios de uma
construção identitária anterior a de Gilberto Freyre: o
regionalismo naturalista euclidiano, que toma o homem como produto do
meio. A este último discurso, renderam-se e o reproduziram os
escritores da geração de 30.
Portanto,
embora haja uma visível predominância de elementos caracterizadores
do sertão: a seca e o gado, vê-se, com efeito, em “Vaca Estrela e
Boi Fubá”, a presença de uma polifonia discursiva que, ao
mesclar-se, idealiza uma identidade homogênea referente a espaços
diferenciados do ponto de vista natural e sociológico, ou seja,
fundem-se elementos identitários do litoral e do sertão para
configurarem uma unidade ao recorte geográfico intitulado de
Nordeste.
Para o
historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, “a saudade é um
sentimento pessoal de quem se percebe perdendo espaços queridos de
seu ser, dos territórios que construiu para si. A saudade também
pode ser um sentimento coletivo, pode afetar toda uma comunidade que
perdeu suas referências espaciais e territoriais, toda uma classe
social que perdeu historicamente sua posição, que viu os símbolos
de seu poder esculpidos no espaço serem tragados pelas forças
tectônicas da história.” Portanto, o lirismo saudosista que
aparece nesse poema de Patativa do Assaré é um dos elementos
essenciais para a noção de identidade, pois a permanência em uma
“terra estranha” possibilita estabelecer o sentimento de pertença
ou não a um determinado grupo. Estar no sul é estar distante dos
códigos referenciais relativos ao espaço nordestino. É preciso
então construir um elo que não faça esquecer a origem.
Logo,
quando Luiz Gonzaga e Fagner resolvem musicar o texto de Patativa do
Assaré processam mais rapidamente a socialização desses códigos
tanto fora como dentro da região, pois a música, pela sua própria
especificidade, consegue atingir um número maior de pessoas. Assim,
os muitos nordestinos que, em decorrência das transformações
históricas e sociais, ocorridas no final do século XIX, foram
obrigados a migrarem para o sul em busca de empregos na pujante
agricultura ou no parque industrial que ali se formava, encontraram
em músicas desse teor a possibilidade de continuarem perpetuando os
códigos referenciais que os tornam diferentes dos sulistas
reafirmando a pretendida “nordestinidade”.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e
outras artes. São Paulo: Cortez, 1999.
Este é o segundo texto primoroso de Cristiane Nóbrega, que vem para enriquecer mais e mais nosso blog.
ResponderExcluirParabéns!
Magnifico texto Cristiane.
ResponderExcluirAo ler este texto reportei-me à Pós-graduação "Identidade Regional - A Questão Nordeste" onde os discursos sobre identidade e afins nos permitiam "descontruir", construir e reconstruir conceitos sobre o Nordeste. Parabéns Cristiane você não me surpreende, pois sua capacidade discursiva e escritora é ímpar.
ResponderExcluirP.S.: Vale a pena ler o livro citado no texto como referência bibliográfica.
Francisca Joseni dos Santos - Professora
Li e reli. Bacana!
ResponderExcluirCristiane,
ResponderExcluirQue texto rico, analisando as "entranhas" culturais, sociológicas, históricas,..dessa belíssima música, que tanto fala de nós, nordestinos; que nos faz chorar quando paramos e a escutamos com o coração!
Parabéns!!!
Esse texto faz lembrar as aulas do grande Durval Muniz, na Pós-Graduação Identidade Regional - A Questão Nordeste. E naquele curso, Cristiane, Joseni e Alessandro eram as estrelas de maior brilho! Texto belíssimo, Cristiane! Vc é dez!
ResponderExcluirCaros, agradeço pelos ricos comentários. Realmente, as ideias desse texto é fruto da pós que Joseni e Nailson citaram e foi muito bom vê-los recordar de um momento que nos propiciou excelentes reflexões.
ResponderExcluirCristiane Praxedes Nóbrega
Nesse blog só tem fera da escrita! Por isso que eu não deixo de olhar nem um só dia.
ResponderExcluirparabéns pela escrita e demostra que ele foi a luta e conseguiu vencer
ResponderExcluirparabéns pela escrita e demostra que ele foi a luta e conseguiu vencer
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