quinta-feira, 2 de outubro de 2025

MENTE SATURADA




MENTE SATURADA


Andou perambulando atrás de uma ideia para expor. A cabeça latejava, enquanto sua esposa procurava uma cartela para colar os selos que lhe dariam direito a uma faca do chef.

— Já encontrou a cartela? — perguntou-lhe.

— Se eu não encontrar, é porque alguém roubou — disse, com uma gargalhada de brincadeira em sua direção.

— É nisso que dá não ter ideia — murmurou ele.

Pelas redondezas, uma música teimava em fazer parte do seu cotidiano, juntamente com um grupo de cinco pagodeiros vestidos de preto, ao lado da chuva fina de que ninguém queria saber.

O dia amanheceu, o bar silenciou, e a chuva precisou engrossar para que se prestasse atenção nela. Não foi fácil pegar o caminho de volta sem que os instrumentos musicais ficassem encharcados.

Daqui a pouco, reiniciará mais um esquento no bombo, pensou o batuqueiro, que nem se deu conta do porquê de gostar tanto de expressar a musicalidade herdada da senzala.

A mulher saiu dizendo que ia para a academia. Ele preferiu ficar disputando um jogo virtual com parceiros também virtuais. Hoje, só percebe que é real por causa das dores no joelho.

A chuva passou. O sol quis ser registrado. Atendido o pedido, ele olhou para um molho de coentro. Só lhe restava filosofar em cima do coentro.

— Coentro sente dor?

— Por que não é vermelho como caqui?

Preciso apagar isso, pensou, pois estaria produzindo provas a favor da sua internação no hospital psiquiátrico.

Apagada a filosofia sobre o coentro, saiu da cama, alertado pela volta dela abrindo a porta.

— Estou com setenta e um quilos — disse, ao chegar suada, depois de puxar ferro por uma hora e pouco.

— Não percebo que emagreci, do jeito que não percebia quando estava gorda — conversava no caminho do banho.

Enquanto esperava o desjejum, veio-lhe o pensamento sobre tampas.

— Aluguei o sítio, e o locatário está produzindo, além de queijo, manteiga — disse seu primo, pedindo-lhe que comprasse qui

 nhentas tampas para as garrafas de manteiga.

Vasculhou o comércio do bairro — e nada.

— Onde você vai encontrar é por trás da funerária — confessou a feirante, que ainda lhe deu dois saputis para degustação.

Foi. Um homem com aproximadamente duzentos e cinquenta anos o atendeu. Para poder entrar na loja especializada, passou por um interfone, uma porta de vidro com grades e, depois, mais outra porta. Nunca imaginou que tampas de plástico exigissem tanta segurança.

O homem alto lhe mostrou os modelos, as cores etc.

Saiu satisfeito para outras compras. No dia seguinte, voltou lá para trocar as tampas.

— Não — disse o comerciante. — Aqui não trocamos, só vendemos.

Acionou o Procon, mas os fiscais não encontraram a loja.

— O que existe naquele endereço — disseram-lhe — é uma casa em ruínas.

Procurou as tampas para provar a compra, porém não as encontrou.

Ligou para o primo, contando o ocorrido. Ele disse que nunca precisou de tampas e que também não havia ligado pedindo que ele fizesse tal compra.

Desligou o telefone e foi internado no hospício. Passou alguns dias, e lá reinava a cultura da fuga.

— Amanhã, logo cedo, vamos todos pular o muro — disse-lhe o comandante da revolução dos doidos.

Aguardou a hora com muita ansiedade, já que não suportava aquele ambiente.

Conseguir fugir era o mesmo que vencer uma olimpíada. Quem pulasse o muro era endeusado, mesmo que depois fosse encontrado vagando pela rua.

Na hora marcada, foram sorrateiramente. Chegando ao local mais baixo, perceberam que a chuva havia derrubado aquilo que os separava do mundo dos sadios.

— Vamos fugir! — gritou para o comandante.

Ele simplesmente disse:

— Não.

— Por que não? — perguntou, já com os pés do lado de fora.

— Não tem graça fugir sem pular o muro. 


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 01.10.2025 - 17h50min.

domingo, 28 de setembro de 2025

VIDA ECONOMIZADA



VIDA ECONOMIZADA


Depois de perceber que demorava um minuto para dobrar os lençóis e ajeitar os travesseiros, ele decidiu nunca mais arrumar a cama. A decisão surgiu quando multiplicou os dias, somou os anos, aplicou porcentagens de margem de erro e concluiu que estava desperdiçando dois dias e meio a cada dez anos.

A escolha causou certo alvoroço no grupo da família, onde ele a compartilhou — com gráficos e tudo. A partir daquele dia, sua cama passaria a ser um território livre do desperdício de tempo e esforço. Para ele, cama desarrumada seria sinônimo de inteligência aplicada.

Não parou por aí. Tomado pelo espírito da otimização, planejou começar uma poupança alimentar. Separava, com todo o rigor de um relojoeiro suíço, um único grão de feijão dos trezentos gramas que comia todos os dias. Calculou que, em um ano, teria reservado trezentos e sessenta e cinco grãos — cem gramas, aproximadamente. Se alguém dissesse que era pouco, ele rebatia que, em três anos, conseguiria economizar uma refeição.

Logo depois, achou desperdício usar um palito de fósforo inteiro para acender uma única boca do fogão. Fez testes, medições e concluiu que metade de um palito bastava para gerar a chama necessária — desde que a mão fosse firme e o movimento, rápido. Munido de um estilete, passou a cortar todos os palitos ao meio. “Cem fósforos viraram duzentos”, anotou em seu caderno, onde mantinha registros que iam desde o consumo mensal de água até a durabilidade média de uma esponja de lavar louça. Para ele, não se tratava de avareza, mas de lógica pura.

Foi então que voltou os olhos para o rolo. Depois de alguns dias de experimentos práticos, chegou à conclusão que a maioria das pessoas usava papel higiênico sem a devida concentração. Optou, portanto, por destacar apenas um pedacinho. Criou até um molde de papelão com o tamanho ideal do recorte.

Na cozinha, a revolução seguiu firme. Percebeu que esfregar cada prato com sabão era um luxo do qual podia muito bem abrir mão. Passou, então, a apenas jogar um fiozinho de água sobre a louça usada, deixando-a estrategicamente inclinada na pia, pronta para o próximo uso. Os talheres foram promovidos a residentes fixos de um pote com água, onde repousavam, livres do sabão e da perda de tempo com enxágues. Quanto aos pratos, passou a comer direto da panela, com a mesma naturalidade com que tomava café em copo de geleia reaproveitado.

Certa tarde, após calcular o gasto anual de energia elétrica com o ferro de passar, somado ao tempo perdido entre camisas e fronhas, tomou mais uma decisão definitiva: venderia o ferro — “aparelho opressor e ultrapassado”, como passou a chamá-lo.

“Se roupa rasgada virou moda, por que a amassada não pode ser tendência?”, argumentava, olhando-se no espelho com uma camisa social que parecia recém-saída de um furacão. Batizou a ideia de “moda funcional”. Enquanto os outros ainda lutavam contra vincos e dobras, ele desfilava pelas ruas com seu look enrugado e expressão de quem não estava nem aí.

Foi numa manhã de domingo que resolveu andar descalço. Tirou sapatos e meias e os guardou numa caixa rotulada como “legado histórico”. Cada passo, sentindo o piso gelado sob os pés, era um novo território conquistado, e, assim, passou a circular livremente, pés no chão e contas na cabeça, evitando solados novos e lavagem de meias.

Inspirado pelos benefícios da vida simples, começou a repensar a necessidade do banho diário. Cada um, com cerca de dez minutos, representava, em média, 80 litros de água e um consumo considerável de energia. Somando-se a isso o gasto com sabonetes, xampus e toalhas, a conta ficou indigesta.

Resolveu, então, adotar o “banho estratégico” — termo que criou para designar uma higienização parcial, com pano úmido, nas áreas de maior movimentação. Criou até um cronograma rotativo: segunda, axilas; quarta, pés; sexta, regiões sensíveis; e domingo, banho completo.

No auge de sua filosofia de economia total, chegou à conclusão inevitável: viver dava trabalho demais. Mesmo com todos os cortes, ajustes e sacrifícios, ainda havia contas a pagar. A existência, segundo ele, era um projeto demasiadamente caro para alguém comprometido com a eficiência absoluta.

E foi então que, em seu caderno de anotações, escreveu o último cálculo:

"O morto não gasta — não precisa comer, nem dormir, nem lavar nada. Não sente calor, frio, vergonha ou tédio. É a paz do saldo zerado."

Preparou-se como quem encerra uma conta bancária. Deixou tudo anotado, inclusive um bilhete:

"Chega uma hora em que a única forma de parar de gastar é parar de estar."

E assim, partiu em silêncio, com planejamento e sem excessos. Nenhum velório pomposo, nenhuma coroa de flores — apenas um bilhete na porta:

"Favor não chorar, desperdício de água salgada."


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 28.09.2025 - 08h28min.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

SOBRE HISTÓRIAS MAL CONTADAS DAS TERRAS DE MERICÓ - Gilberto Cardoso dos Santos



Perguntaram-me: 

- O livro Histórias Mal Contadas de Mericó, da autoria de Aldenir Dantas, é bom?

Respondi:

- É tão bom, mas tão bom, que o emprestei por 15 dias em 2024 a uma pessoa muito honesta e até agora não o recebi de volta.

Na verdade, dizer que é bom não é suficiente, pois se trata de uma obra diferenciada, digna de destaque. O autor, por excesso de modéstia, pôs no título que são histórias mal contadas, mas isso não corresponde à verdade. Aldenir escreve divinamente bem, põe poesia em suas bem traçadas linhas! Suas histórias, tão dele, tão nossas, nos fazem rir, refletir e às vezes até chorar.

Sua linguagem transita entre o popular e o erudito. Sem medo de parecer regionalista, ele proseia sua aldeia com maestria, sempre dialogando com outras realidades e tempos e a insere na universalidade das boas produções literárias.

Neste livro, Aldenir cristalizou a voz e o imaginário do povo em sua essência, lapidou histórias que não deveriam ser esquecidas. Mericó é Coronel Ezequiel, mas poderia ser qualquer outra cidade interiorana radicada no Nordeste. Mericó, como o sertão, está dentro da gente.

Trata-se de uma obra física e conteudisticamente robusta - quase 250 páginas em papel especial - repleta de contos recheados de causos burilados e  entesourados pelo autor. Podem julgar o livro pela capa, belamente ilustrada por Jefferson Campos.

Se quiser ver a opinião de alguém da academia, do mundo das letras, leia o que a pós-doutora Valdenides Cabral escreveu em  https://apoesc.blogspot.com/2021/09/merico-mericos.html

Ouça, também, o que nos diz o próprio autor em https://www.facebook.com/reel/1341876030663425 

Já o li na íntegra, reli em parte e encerro dizendo: vale a pena ler de novo.


Gilberto Cardoso dos Santos


Gmail, Instagram e Facebook: gcarsantos ( fone 84 999017248)




Obras de Gilberto Cardoso









quarta-feira, 24 de setembro de 2025

ESPINHO - Aldenir Dantas

 






DECEPÇÃO ESPACIAL

 


DECEPÇÃO ESPACIAL


Quando eu disse que queria "dar um tempo da Terra", não imaginei que a NASA fosse me levar tão a sério. Mas cá estou, flutuando numa cabine apertada, cercado por painéis piscando — e agora me veio à mente a dúvida: será que desliguei o gás antes de sair?


O papagaio deixei com a vizinha — uma senhora gentil, embora desconfiada das minhas intenções desde que comentei sobre minha “missão interplanetária”.


O gato… bem, lembrei-me que nunca tive gato. Apenas disse que sim para dar a impressão de que sou uma pessoa sensível, carinhosa e boa com os animais.


Olhando para a Terra parecendo uma bola de gude azulada, pergunto-me: era isso mesmo que eu queria? Quem sabe eu só precisasse de férias no sítio do vovô, caçando préa e comendo fruta de cardeiro — mas agora é tarde para desistir.


O treinamento foi intenso: meses de simulações rigorosas, testes físicos exaustivos, exames psicológicos intermináveis e palestras técnicas sobre como não morrer no vácuo. Aprendi a operar painéis de controle e até a dormir em pé... flutuando, melhor dizendo.


O que está difícil mesmo é dividir o banheiro com três colegas em gravidade zero. Se já é chato segurar a vontade em casa, imagina no espaço — onde qualquer gota fora do lugar vira parte do sistema de circulação de ar. É preciso agendar, negociar, quase mediar tratados de paz só para conseguir cinco minutos na privada.


A solidariedade forçada de quem divide poucos metros cúbicos nos transforma na família Addams. Cada um tem suas manias, seus horários, seus barulhos — alguns agudos, outros tipo trovão — e aqui, no silêncio eterno do cosmos, qualquer som é motivo para alerta.


Os primeiros dias foram empolgantes. Fotos da Terra, vídeos para as redes sociais. Flutuar feito fantasma tinha seu charme. No começo, era divertido trombar nas paredes, dar cambalhotas no ar, sentir-me o próprio super-herói em câmera lenta. Mas aí o tédio bateu.


Primeiro notei que já havia feito todas as fotos possíveis da mesma janelinha. Quando me dei conta, estava conversando com o aspirador automático só para ouvir uma voz que não fosse a minha.


Com o tempo, senti falta de um ventilador ligado no fim da tarde e até de carro de som anunciando velório. Aqui, a gente dorme amarrado na parede, como se fosse um casaco pendurado atrás da porta. Não tem essa de virar de lado, nem de puxar o cobertor no meio da noite, muito menos aquela alegria de achar a parte geladinha do travesseiro.


A gravidade não me deixa deitar; simplesmente flutuo, preso por tiras de velcro, tentando fingir que estou confortável enquanto meu corpo insiste em lembrar que não fui feito pra dormir dentro de um saco colado na parede. 


Aqui, banho é com lenço umedecido. Eu daria tudo por um sabonete de verdade, uma toalha fofa e aquele barulhinho da água caindo sem medo de flutuar.


Comecei a escrever um diário. Na Terra, isso é chamado de "terapia barata". Aqui, é chamado de "manter a sanidade enquanto orbitamos a 28.000 km/h".

Meu diário tem entradas do tipo:


Dia 15: Senti cheiro de chocolate. Era miragem.

Dia 16: Flutuei demais e bati a cabeça. Agora vejo duas Terras. Ambas igualmente lindas.

Dia 17: Ouvi um barulho estranho na cabine. Era meu estômago gritando por socorro.


A internet aqui funciona com a velocidade de um pombo cansado. Mandei uma mensagem para minha mãe. Ela respondeu uma semana depois. Disse: "Leve um casaco". Mãe é mãe até em órbita.


Tenho pensado muito na grama do meu quintal. Na brisa da manhã. Até nos mosquitos. Aqui, não tem mosquito, mas tem um colega que ronca como se fosse um enxame inteiro.


À noite, olho para as estrelas e penso: “Bonitas, mas preferia o céu de casa, com nuvens que parecem algodão e não sensores de navegação.”


Na decolagem, senti-me um herói. Foguete subindo, motores rugindo, lágrimas nos olhos. "O universo é o limite", pensei. Mal sabia eu que o limite era o cardápio: sopa em pó, café com gosto de sabão e um creme amarelado que parece ter sido cuspido por um alien gripado.


O que realmente me quebra é a saudade da comida da minha avó. Lembro do cheiro do arroz com alho, do feijão encorpado, do frango assado. Aqui, o almoço se parece com tinta de impressora. É o tipo de coisa que me faz questionar se a evolução da tecnologia realmente valeu a pena. Nenhuma IA ainda conseguiu replicar o sabor do tempero feito por uma senhora que não segue receita. E quer saber? Nem precisa. Porque o que ela faz é memória servida no prato.


O espaço tem seu charme, claro: silêncio absoluto, nenhuma fila de banco, zero boletos. Mas também tem suas desvantagens. Tipo o fato de que não há uma esquina sequer para comprar um pão com manteiga.


Outro dia, sonhei que estava no mercado, comprando frutas frescas. Acordei abraçado a um pacote de comida com gosto de manga vencida. Acordar de um sonho assim é tortura espacial.


Meu maior medo é voltar e descobrir que meu time foi rebaixado enquanto eu salvava a humanidade comendo comida com gosto de isopor.


Cheguei à conclusão de que o espaço é incrível. Mas não tem cheiro de chuva. Nem abraço de vó. Nem pão de queijo saindo do forno. E, sinceramente, um universo sem pão de queijo talvez nem mereça ser explorado.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23 de setembro de 2024 - 16h23

sábado, 20 de setembro de 2025

CRIATIVAMENTE CAÓTICO



 CRIATIVAMENTE CAÓTICO


Levantou-se, como qualquer pessoa sadia se levanta da cama, da poltrona etc. Colocou os pés no chão, nas sandálias, na lama etc. O autor estava em dúvida sobre o que o personagem faria, por isso o leque de possibilidades. 


Depois que o personagem se levantou, ficou esperando um comando para ir se caracterizando dentro do texto. Sem muita ansiedade, torcia para voltar a dormir, isso porque sentia empatia pelos costumes do autor.


Uma nuvem escura surgiu no céu. Tinha a cara de Haruki Murakami — logo descoberto por tentar tomar conta deste espaço autoral com seu estilo característico de inserir detalhes da natureza em suas obras.


O autor original estava bem descontraído depois de desmascarar essa tentativa, quando percebeu uma mulher linda e bêbada saindo de um bar escuro, fumando um charuto e jogando as cinzas no chão.

— Ah, não! Até você, Charles Bukowski? Também quer tomar conta disso aqui com seu estilo alcoolizado?


O leitor queria desistir da leitura, por causa dessas interferências.

— Calma — disse o autor —, ou apagarei o que já foi escrito e continuarei exercendo meu direito de ficar indeciso. Saiba que aqui é um pouso certo para amigos escritores; portanto, não há pressa.


— Eu não posso ficar aqui parado, esperando a morte chegar — reclamou o personagem.

— Espere aí! — disse uma das leitoras. — Essa frase, “esperando a morte chegar”, é do meu ídolo Raul Seixas. E só porque ele está morto, não quer dizer que você possa usá-la sem dar os devidos créditos.

— Tudo bem! Fica registrado que é dele.


— Vamos adiante... bem... hã... onde eu estava mesmo?


— Vamos colocar ordem nesta escrita — disse um crítico literário.

— Desculpe-me — interveio o autor. — Quem lhe chamou aqui?

— Vi a porta aberta e entrei — respondeu o crítico. E, sem gaguejar, tossir ou escarrar, acrescentou:

— É melhor relevar o que foi escrito acima, porque eu, sinceramente, não considero isso literatura. E digo mais: estou interferindo para evitar que isso caia nas mãos da professora Aurora Bernardini. Ela, que até já disse que o livro "Torto Arado" não é literatura... imagine o que diria disso aqui.


O autor, percebendo que a discussão continuaria sem chegar a um consenso, avançou nos trabalhos — contudo, sem muita convicção sobre qual direcionamento daria ao personagem. E, por falta de criatividade, recuou para o início, repetindo a palavra:


"Levantou-se..."


Deu um branco, pois estava de ressaca. Então, o jeito foi pedir ajuda a quem havia farreado com ele na noite anterior. Bukowski respirou fundo, acendeu um cigarro, tomou uma garrafa de vinho de uma só vez, cuspiu no chão e, finalmente, escreveu:


"Levantou-se e foi cagar."


Nessa hora, mais da metade das jovens alunas de colégios tradicionais desistiu da leitura. Outras não só desistiram, como também levaram o texto ao conhecimento dos pais, que, por sua vez, perguntaram qual professor havia indicado essa leitura.


A Associação das Defensoras dos Bons Costumes entrou com uma ação impeditiva, visando demitir todo e qualquer profissional da educação que fizesse referência ao presente texto. Na reunião, lá estava, no banco dos réus, o personagem — que ainda não havia ido ao banheiro, tendo em vista que a sugestão de Bukowski não fora aceita.


Um cão latiu fora do prédio — colocado por Murakami com o objetivo de suavizar a leitura. E, tomando o leme da obra com permissão do autor, ele continuou com seu estilo inconfundível:


Na sala de reuniões, havia cadeiras cinza, almofadas, tapetes, um birô e duas mesas cheias de salgadinhos. Em cima das mesas, jarras com suco de goiaba; dentro das jarras, colheres de pau. Quase todas as duzentas e quinze cadeiras (ele havia pedido a um autor de livro de estatística para contá-las) estavam ocupadas por mulheres decentes, sendo que os homens... estavam todos infectados de chatos", interferiu novamente Charles Bukowski.


— Bote esse cara pra fora! — gritou a fã de Raul Seixas.


Murakami continuou:


— Uma borboleta pousou na boca do poço. Não consegui ouvir o barulho da pedra que atirei no poço.


— Dá pra você parar de falar em poço? — gritou, mais uma vez, aquela que se definiu como sendo uma "maluca beleza". E outra: pare de descrever os ambientes como se estivesse fazendo um retrato falado. Isso cansa.


— É o meu estilo — disse Murakami —, assim como o meu nobre colega aqui — apontando para Bukowski — tem uma obsessão por escrever sobre mulheres desmanchadoras de casamento.


O personagem que havia se levantado no início da narrativa pediu para se sentar, pois estava cansado a ponto de desmaiar. Nessa hora, chegou José de Alencar com seu repertório de desmaios:


— Se quiserem colocar mais gente para desmaiar, podem contar comigo — disse o autor de "Senhora", admitindo que desmaios eram sua especialidade.


Para não se passarem por torturadores de personagens, a turma da reunião, além de ignorar José de Alencar, deu permissão para que o autor original continuasse.


Depois de se levantar da cama do hotel, onde estava de férias com a mulher e o casal de filhos, ele saiu do apartamento e se dirigiu para saborear o café da manhã à beira da piscina. Mais adiante, num palco improvisado, uma jovem cantava marchinhas carnavalescas, acompanhada por uma banda de frevo.


— Esta narrativa está muito água com açúcar — opinou Quentin Tarantino, que havia saído do meio de uma gravação só para dar sua opinião.

— Se fosse eu, já colocaria um homem-bomba se explodindo, só para colorir de vermelho as paredes brancas do auditório.


— Agora me digam: o que é que um cineasta está fazendo dentro da literatura? — perguntou aquele leitor que já estava querendo ir embora.


Nessa hora, ouviu-se a sirene da ambulância, levando Aurora Bernardini, infartada por ter ouvido dizer que isto aqui era "a pura literatura com ecos no pós-modernismo".


— É mentira que eu falei o que não sei, e nem tenho nada a ver com infarto de quem quer que seja! Eu só leio... Mas, pelo jeito, nem isso vou conseguir fazer hoje.


O filho do personagem principal perguntou:


— Pai, o senhor pode pedir ao autor para me colocar como sendo o menino voador?


 — Você deseja voar? Sim, igual a Jesus Cristo, quando subiu aos céus sem ter um tico de asa.

Bem, se o autor quiser, ele pode — até porque, pelo menos, os cristãos jamais irão dizer que isso é surreal.


— E você, minha filhinha, o que deseja que o autor faça por você?

— Bem, pai, eu gostaria de ser mãe e permanecer virgem, igual a Santa Maria. Será que é possível?


— Sim, vou falar com ele. E, se ele se negar a isso, nós pedimos demissão daqui e vamos trabalhar com os escritores da Bíblia — pelo menos lá tudo isso é possível, inclusive escrever que Jonas passou três dias e três noites na barriga de uma baleia... e ainda saiu vivo.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 20.09.2025 - 11h19min.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

SILÊNCIO NAS EXPECTATIVAS

 



SILÊNCIO NAS EXPECTATIVAS 


No final de uma noite clara, a jovem se deu conta do quanto sofria. Olhou para o dorso da mão e passou a observar algumas pintas pretas que davam um charme especial ao seu antebraço. Aquilo era de nascença — tanto as pintas quanto a habilidade de refletir sobre as perspectivas de futuro.

— O que está reservado para mim? — perguntava-se, no momento em que apagava do caderno algumas profissões que jamais seguiria. A natureza não lhe havia presenteado com o dom de cantar, tampouco de tocar um instrumento musical, então não seria sensato fazer um curso nessa área, mesmo tendo escutado de um professor que bastava treinar.

— Ele queria era ganhar meu dinheiro — lembrou-se de ter pensado, à época.

Abriu a janela para ver se a lua lhe serviria de gatilho para novas ideias. No celular, viu a foto do bebê que fora, posando no braço da mãe com a mesma lua ao fundo. Sobre a escrivaninha onde estava o computador, havia cadernos, uma xícara de café e canetas, com as quais anotava os possíveis pontos de partida para uma vida cheia de compromissos.

Releu, na agenda, que precisava perder algumas gramas, mesmo que o apetite a chamasse em direção à geladeira. Resistiu. Enquanto tomava água, uma mulher foi atropelada em frente à varanda do seu quinto andar. Lá embaixo, uma pequena multidão de curiosos fazia o papel de atrapalhar o trânsito.

— E se eu fosse a vítima? — pensou. Preferiu sair do campo de visão do acidente e se concentrar nas próprias dúvidas, em vez de puxar fios de possibilidades nos problemas dos outros.

Sentou-se na cama, lembrando-se de uma frase do psicólogo:

— O seu problema é que você não tem ambição.

Mesmo tendo consciência de que não precisava de excessos, sentia a necessidade de preencher seu tempo com atividades que lhe dessem a sensação de pertencimento.

Sua coordenação motora a deixava para trás até mesmo em jogos eletrônicos; portanto, seguir a carreira de atleta também estava fora de cogitação.

— Vá dormir, minha filha! — escutou a mãe gritar lá do quarto.

A partir de amanhã vou começar a mandá-la fazer o mesmo, pra ver se ela acha bom!, pensou, ao fechar a porta da suíte.

— Não estava com sono, e mesmo assim teria que dormir? Santa paciência... — murmurou. Se fizesse os gostos da mãe, seria uma boa menina; porém, se permanecesse com a lâmpada acesa, seria má para a mãe e boa para si mesma.

— Será que é sobre isso que a Bíblia nos fala? Deus e o Diabo numa só pessoa?

Voltou-se para si e percebeu que permanecia andando em círculos. A cada dia surgia um novo desafio, e ela precisava replanejar tudo a partir do zero, como se fosse o pontapé inicial de um campeonato. Queria ser como as pessoas que não estão nem aí, mas sua mente não a deixava em paz. A cada nova mudança em sua rotina, um turbilhão de possibilidades surgia. Talvez fosse assim porque sempre buscou seu próprio caminho.

Ultimamente, vinha sendo cobrada por não ter namorado nem amigos. Suas colegas mais velhas já iam a festas — muitas até mantinham relações como se fossem casadas — e ela sabia disso porque frequentava uma série três anos à frente de sua faixa etária.

— Aonde foi que errei o caminho? — perguntava-se, sem entender a pressão para seguir esse padrão social do “tamo junto”. O pior era que não conseguia se soltar, por mais que se esforçasse.

Deitou-se no sofá para pensar com os olhos fechados. Era assim que tentava se acalmar. A noite já se transformara em madrugada, e ela não pregava o olho. Sabia que existiam milhares de pessoas naquela mesma situação de alerta noturno.

No grupo da insônia, as mensagens corriam soltas:

— Olá, grupo. Há alguém acordado aí? 

— Estou triste... meu gatinho morreu.

— Galera, vcs viram a briga hoje no pátio?

— Acordei agora com um tiroteio aqui perto da minha casa, tá ligado!

— Se alguém souber notícias do meu gato poste no grupo.

— O namorado de Sofia trocou ela por outra, vocês souberam?

— Passei de ano. Agora vou para o ensino médio,  uhuuuuu.

Desligou o celular e voltou a ficar quieta. O lado bom daquele grupo era que servia de consolo para quem achava que só ele tinha problemas.

Considerava certo que, se um dia fosse mãe, seria um desastre. Até um cãozinho que os pais lhe deram no aniversário de dez anos ela não conseguiu cuidar. Depois de um certo tempo, o animal foi doado, em um dia em que ela estava assistindo à aula. Quando chegou do colégio e soube da doação, ficou muito contente por poder voltar a usar o espaço para armar uma rede e navegar sossegada pela internet.

Há poucos dias, notou que seu corpo apresentava um crescimento acelerado, diante da transição de criança para adolescente. Preocupada, passava horas medindo-se, fazendo estatísticas com atenção redobrada, focando nas proporcionalidades entre o tamanho das orelhas, do nariz e da testa, até dar o veredicto: era uma pessoa feia e deselegante — apesar de os meninos da sala dizerem o contrário.

Se continuasse a crescer, talvez pudesse ser modelo, porém lembrou-se das medidas exigidas para a profissão. Não era burra para acreditar que cresceria mais do que seus pais. 

Foi à cozinha à procura de um descascador de cenouras, pois escolhera esse legume como substituto do pão. Sua atenção foi desviada por um barulho no quarto; contudo, já sabia do que se tratava. Pensou, com um ar de cinismo: "Aí estava a razão por que mamãe se preocupa tanto em me mandar dormir cedo."

Para não se explodir com tantos pensamentos, resolveu apagar a lâmpada do banheiro. O escuro total tinha o objetivo de treinar como seria o banho de uma pessoa cega. O sabonete teve que ser encontrado com os pés, pois parecia que as mãos tinham pequenos olhos — e eles deixavam tudo cair ao perceber a escuridão.

— Deve ser o medo de não encontrar de novo o que se perde por estar, literalmente, às cegas.

Desde pequena, pensava em ser uma boa pessoa. Mas, pelos seus cálculos, isso era impossível. Quando agradava alguém, sentia-se injustiçada e quando dizia que não concordava com alguém,  causava-lhe mal-estar. 

Finalmente, adormeceu. Ouviu-se batidas no banheiro e na cozinha. A casa estava acordando. Passos em sapatos de couro fino denunciavam a classe da família; Rolls‑Royce Droptail na garagem com guardas zelando pelo sossego da família, justificava a correria do pai para suprir o padrão de vida — o mesmo padrão que deixava a filha aflita por não ter certeza se conseguiria mantê-lo depois que saísse de casa.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 18.09.2025 - 09h15min.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

EMPURRADO PELO ABSURDO

 


EMPURRADO PELO ABSURDO


Dois ovos pela manhã e... hããã... O homem pensou. Pensou. Estava desanimado para dizer como tinha sido seu desjejum. Com a demora, o médico tentou apressar a consulta:

— O que mais?

— Na próxima vez eu digo — respondeu o homem. — Por hoje, já falei demais.

E saiu sem sequer dizer "até logo".

Lá na frente, lembrou-se do bolso de trás: o celular. Havia deixado no consultório. Contara noventa e oito passos — valia a pena voltar, e foi o que fez. Ele tinha a mania de contar os passos; porém, na volta, nem se lembrou disso.

“Meu celular... Deixei em cima do birô do médico.”

Foram procurar.

— Não encontramos. Compre outro — disse a recepcionista.

O injustiçado ficou sem provas para chamar a polícia, e seu pensamento esbarrou num assunto que fugia totalmente do contexto: qual a diferença entre crocodilos, jacarés e aligátores? Se estivesse com o celular, iria pesquisar.

Já se encontrava na calçada quando a mesma recepcionista que mandara comprar outro o chamou:

— Tome. Estava debaixo da cadeira da sala de espera.

Ele pensou em dizer: “Quer casar comigo?”, mas preferiu ficar somente no:

— Muito obrigado.

Caminhou um pouco e encontrou um boteco na esquina. Havia três homens jogando cartas numa mesa; garrafa de pinga e tira-gosto, em outra.

— Posso pegar uma dose?

— Não!

— Por quê?

— Porque depois da pinga, você vai querer um pedaço de frango, vai se meter no jogo e vai sair com a cara quebrada. Para evitar tudo isso, é melhor não — disse o jogador que se achava o porta-voz do grupo.

O dono do bar afinava o violão. Ao vê-lo se encostar no balcão, perguntou:

— Canta alguma coisa?

— Dê um ré maior.

Logo no início da canção, o jogador olhou em sua direção e refez a fala: 

— Quando terminar, pode vir pegar a pinga.

Aplaudido, ele foi para a mesa dos jogadores. Duas horas depois, a profecia se cumpriu: levantou-se do meio da rua com o nariz sangrando. Bateu a poeira, pensou em se vingar, mas resolveu ir embora.

Desorientado, entrou na primeira porta aberta que encontrou: uma biblioteca pública com pouca movimentação. Folheou alguns livros como quem está interessado em pesquisar. Deparou-se com a frase: “A alma de um homem está profundamente enraizada em seu estômago.” Além da frase, o título do livro também o deixou intrigado. O que significa factótum?

Pesquisou e descobriu: era uma pessoa que fazia de tudo.

"Será que sou um factótum?", pensou.

Retirou o livro da estante e sentou-se à mesa de leitura.

Logo depois, uma jovem se aproximou com uma braçada de livros.

Ao levantar a vista, ela não se conteve:

— O senhor está sangrando. Quer ajuda?

— Sofri um acidente na igreja. Estava arrumando o altar e uma estátua caiu no meu rosto.

— Vamos para a minha casa. É aqui pertinho.

Ela o pegou pelo braço e lhe proporcionou banho quente, curativo, lanche e cama.

— Durma um pouco. O senhor precisa descansar.

Ele obedeceu.

Vieram os sonhos. Ele estava montado em um cavalo preto, numa noite sem luar, à beira-mar. Cavalgava por entre duas barreiras d’água — lembrando Moisés — e de repente os paredões se fecharam.

Acordou com a polícia jogando um balde d’água em seu rosto.

— Está preso!

— Qual foi o meu crime?

— O senhor profanou uma igreja.

— Não, não fui eu.

— Esse rosto cheio de curativos é a prova.

— Eu menti. Isso é o resultado de uma surra lá no bar.

Os policiais viraram fumaça — era um sonho dentro de outro.

Voltou para cima do cavalo e, num piscar de olhos, a praia transformou-se em um deserto de neve, com uma matilha de lobos em seu encalço. Alguns animais alcançaram o cavalo; contudo, um homem passou montado em um tigre e o salvou.

Durante a viagem pelas montanhas, conversaram sobre a salvação da alma.

— E o corpo? Também pode ser salvo?

— O corpo não existe. Tudo isso é fruto do funcionamento dos órgãos dos sentidos, que atuam dia e noite para sustentar uma falsa existência. Se deixarem de funcionar, você deixará de existir.

Acordou com pressão na bexiga. Como seria bom não sentir mais dor. No banheiro, fez o que tinha que fazer, além de...

A jovem bateu na porta.

— Está na hora de o senhor ir embora.

— Vou já — respondeu ele.

Abriu a porta do banheiro e dirigiu-se para a sala de estar.

— Aconteceu alguma coisa?

— O meu marido está para chegar, e ele não vai gostar de ver o senhor furtando os sonhos dele.

— Eu não furtei nada. 

— Aqueles sonhos fazem parte do repertório daquela cama. Ele comprou a cama, os lençóis, os travesseiros — e os sonhos vieram como brinde. Se o senhor não for embora, ele vai lançar, sobre o senhor, os antigos pesadelos que guarda no subconsciente. E aí o senhor vai saber o que é sofrimento.

— Como você sabia que eu estava sonhando?

— Usei a paranormalidade aperfeiçoada para vasculhar sua mente enquanto dormia. Vá!

Dito isso, ela o empurrou de porta afora. Ele não manifestou nenhuma reação contrária, pois aquela moça, enquanto ele dormia, havia furtado todas as suas memórias, deixando-o indefeso. 


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 15.09.2025 - 17h40min.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

ESPIONAGEM ULTRASSECRETA

 


ESPIONAGEM ULTRASSECRETA


— Chegou?

A mulher entrou com um “sim”, empurrando o carrinho de compras.

— Conte as novidades! — exclamou o marido, interrompendo a leitura da obra Crônica do Pássaro de Corda.

Ela caminhou até o escritório, deixando o carrinho ao lado da pia limpa. O início de setembro, com ventanias e chuvas finas, o fez fechar portas e janelas.

— Aqui está frio — disse ele, tentando justificar o calor que fazia ali dentro.

— É, como sempre, você se enfurnando nessa sua caverna.

Ela o chamava, de forma carinhosa, de "Homem de Neandertal", por ele gostar de viver isolado e ser rude. Era uma brincadeira recorrente entre eles, reforçada pelas diferenças de temperatura entre os dois: ele sempre com frio, ela sempre com calor.


Na convivência do casal, essas disparidades térmicas já eram rotina. Ele acreditava que seus ancestrais tinham vindo do Polo Norte, enquanto os dela, da África. As divergências climáticas ainda rendiam discussões acaloradas, mas sem maiores impactos no relacionamento.

— Chutei um grilo que estava na entrada da nossa porta — comentou ela, deitando-se no sofá do escritório.

— Deve ter sido o mesmo que escutei ontem à noite — respondeu ele, tirando os olhos do computador para encará-la. 


Nesse ínterim, homens de preto subiram até o andar deles e recolheram o grilo que ela havia chutado. O porteiro nem percebeu como aqueles homens entraram e saíram; só se lembra de que, em determinado momento, desmaiou por causa de um cheiro forte que saiu de uma caixa de delivery de pizza.


Enquanto conversavam, ela fez uma pausa, mergulhada em lembranças da feira daquele dia. Lá, uma feirante a havia alertado:

— Moça, este carroceiro é doido.

— Eita, e agora, o que faço para dispensá-lo?

— Deixe comigo. Ei, carroceiro! O primo dela vem pegar as frutas.

Sem pestanejar, a feirante e o filho retiraram os sacos da carroça. A situação a fez rir por dentro, embora não demonstrasse.


Ao notar a distração da esposa, o marido voltou para o computador e deu continuidade ao artigo que estava lendo. Na publicação,  um renomado físico atômico defendia que: "Em uma perspectiva teórica que considera os princípios da relatividade, especialmente a reversibilidade das equações fundamentais da física no tempo, é possível especular que o processo que levou à formação de estruturas complexas — como o Big Bang originando o universo — também poderia, em condições extremas e inversas, permitir a condensação de matéria organizada em formas distintas e improváveis. Assim, levando essa ideia ao limite e tratando os átomos como entidades reorganizáveis dentro das leis da física, pode-se hipotetizar que os átomos que compõem um ser humano poderiam, teoricamente, ser reconfigurados e condensados de maneira ordenada até assumirem a forma e a funcionalidade biológica de um grilo". 


Quando percebeu que o marido estava muito concentrado,  ela o interrompeu, pedindo uma “audiência”. Assim chamavam, em tom de brincadeira, os momentos em que queriam conversar com mais seriedade. Ele se virou, curioso, e ela prosseguiu:

— Ontem à noite, acordei sentindo que algo estranho acontecia. Você estava dormindo aqui no escritório, como sempre faz de madrugada. Acendi a lâmpada e percebi o colchão com manchas vermelhas.

— De onde teria vindo o sangue?

— Eu também pensei que fosse um sangramento, porém percebi, ao cheirar, tratar-se de suco de beterraba, que derramei sem querer ao me deitar.


Riram da situação e, como de costume, a conversa derivou para temas variados: terrorismo, meio ambiente... até que voltaram a falar da família.

— Acho que vou acompanhar minha mãe na consulta.

— E é preciso?

— Claro. Ela omite o fato de que está se esquecendo.

— Deve ser esquecimento o fato de ela não dizer que esquece.

A decisão estava tomada. Durante a ligação, tentou convencer a mãe:

— Mãe, nós vamos entrar com a senhora para falar com o médico sobre como a senhora está.

— Você quer é aparecer — respondeu a mãe, com uma gargalhada tensa, como se dissesse: "Deixe de ser besta, que eu não estou demente."

— Eu vou pagar sua consulta. Mesmo assim, não tenho o direito de acompanhá-la?

— Tudo bem, pelo menos você faz esse pequeno passeio — cedeu ela, após a insistência do filho. 


Na semana seguinte, a “procissão” — como a mãe apelidara o grupo que a acompanhava — entrou no consultório. O filho tomou a palavra:

— Doutor, ela está muito esquecida e dorme mal.

— É sua mentira — retrucou ela, com o semblante carregado.

Enquanto a consulta prosseguia, a mãe, nervosa, negava tudo e batia os dedos nas próprias pernas. O médico, paciente, checava a ficha da paciente,  enquanto o filho, aproveitando o silêncio,  chamou a atenção da mãe para que ela tivesse um relacionamento mais respeitoso com a empregada. 

— Eu nunca gritei com ela.

— Já, e não foi só uma vez, não. E acabe com essa conversa de chamar a neta dela de “negrinha”.

O bate-boca durou mais de meia hora, até que o médico encerrou:

— Tome este remédio três vezes ao dia.

— Ela corta os comprimidos em quatro e só toma um pedaço — denunciou o filho.

— A senhora deve tomar conforme a receita, retomar a fisioterapia e usar sandálias ortopédicas — finalizou o médico, apertando a mão do filho e desejando-lhes boa sorte. 


Após a consulta, foram ao estacionamento e, por acaso, ele percebeu um parafuso preso no pneu dianteiro.

— Olha só! Só pode ter sido naquela rua onde, há bastante tempo, três pneus furaram ao passarmos por lá.

— Lembro-me — assentiu a esposa, acrescentando que lá sempre haveria armadilhas: pregos, parafusos, cacos de vidro...


Os compromissos urgentes tiveram que esperar, pois a borracharia era o destino mais adequado naquela situação. Lá, decidiram encher os pneus com nitrogênio.

— Essa molécula tem uma ligação tripla muito forte e curta. Por isso, o pneu cheio de nitrogênio não vaza com facilidade — explicou o borracheiro, ao terminar o serviço.


A esposa não tinha descanso: além da feira e da frota de veículos, também administrava corridas de camelo num hipódromo onde árabes exibiam seus animais enfeitados com túnicas douradas avaliadas em milhões. O marido, por sua vez, cuidava das apostas, desde que as chuvas artificiais entraram no portfólio de serviços do deserto.


No dia seguinte, a esposa viajou com a sogra para o interior. No caminho, seu carro foi interceptado pelos guerrilheiros que exigiam reparação financeira pelos danos causados ao agente secreto disfarçado de grilo, que ela havia maltratado.


Heraldo Lins Marinho Dantas – Natal/RN, 11.09.2025 – 22h21min.

sábado, 6 de setembro de 2025

A DOR QUE NÃO VIRA FOTO



A DOR QUE NÃO VIRA FOTO

 

— Acorde para viajar. Lá se foi ela com três volumes nas mãos em direção ao trabalho. Mora em uma cidade e trabalha a mais de cem quilômetros de distância. Pega táxi, ônibus, moto e chega.

— Leve dinheiro, disse o marido enquanto ela se arrumava. Desde os sete anos, precisa correr atrás da sobrevivência. Antes era a mãe no "Está na hora da escola". Ainda bem que amou tanto os pretensos filhos que preferiu seguir à risca a frase de Brás Cubas: "Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria". 

— Será que nunca vou ficar livre dessa trabalheira?, pergunta-se uma outra ao subir o rio para ganhar a vida. Hoje em dia, conquistou um barco a motor para substituir braços e remos. Na adolescência, precisava jogar a corda nas amarras do vapor e subir com um tabuleiro de cocadas. Assédio, furto, piadas maliciosas — tudo suportado com um sorriso por fora e choro por dentro. 

As duas, dentre milhões, seguem a rotina de acordar para trabalhar e trabalhar para dormir com o estômago menos vazio. Se fossem prostitutas, teriam outra carga de responsabilidade: fazer exames, sorrir, beber, fumar, enxugar as lágrimas — em segredo, de preferência no banheiro, sozinhas — e, depois de certo tempo, dizer que a vida tinha sido cruel com elas.

Passaram-se anos e a aposentadoria chegou, trazendo um marido inválido para cuidar, e o outro para ser lembrado no Dia de Finados. Olham para a memória e sentem a mesma sensação de um dever nunca cumprido. Ainda não terminou, observam-se, fazendo projeções econômicas. Contratar uma diarista e tomar sopa no shopping seria um sonho, seguindo recomendações do psiquiatra que ignora a real situação financeira das pacientes. Para qual das duas? Para quase todas pertencentes ao universo feminino. Poderiam incluir uma sessão de cinema, além da diarista e do prato de sopa? Deixe-me ver. Hum, ficaria sem recursos para o deslocamento até o hospital, caso precise. Uma garrafa de vinho? É desejo inalcançável para quem ganha pouco.

Poderiam nunca mais assistir a vídeos mostrando modos de vida acima do padrão, mas precisam estar antenadas, mesmo sabendo da distância medida pela geração de renda.

Ainda bem que o vento e o sol secaram as roupas do varal sem taxa nem boleto. Vai pular o almoço. As frutas precisam ser consumidas; além de economizar gás, economiza também o detergente da lavagem dos pratos e ainda ganha tempo para tricotar o par de meias encomendado, mesmo que amanhã sinta-se esgotada. 

Uma outra, com coroa de brilhante na cabeça, olha para a da lata d’água no mesmo lugar. Os objetos definindo quem chora e quem ri. A mãe da lata diz adeus ao próprio tempo, acorda de madrugada, divide migalhas e deixa o recém-nascido morrer de causa aparentemente natural. Coroa não traz a salvação. Com esse argumento, sentem-se conformadas, sem se dar conta dos conceitos criados com o objetivo de mantê-las no conformismo.

Sempre estiveram presas em pensamentos de sutiã folgado, calcinha apertada, DIU, creme, cabelos, corrimento, carência... Como é difícil administrar um corpo feminino, e mais difícil ainda é antecipar-se aos eventos hormonais. Têm prazo de validade para brincar, namorar, parir e partir. Isso as deixa aflitas.

— Você não é mais mulher! Como se a maternidade separasse a menina da idosa e, nesse meio, o que realmente importasse fosse o interesse redobrado dos agentes fertilizadores.

A mulher que caminha devagar na garagem da clínica olha de lado com a bolsa à tiracolo, vindo do ginecologista. Daqui a pouco vai à academia, cabeleireiro, chá das cinco... Vida perfeita, se não fosse arrastar a mãe idosa com algumas síndromes características de muitos janeiros comemorados. — Será que ninguém está totalmente feliz?, pergunta-se ao pisar na sandália que acaba de se partir. Um pé em cima, outro embaixo. — O que irão pensar de mim?, perguntou-se depois de se ver livre dos calçados. Uma mulher da alta roda, andando descalça. Só espero que meu marido não esteja usando a frigideira de porcelana para fritar ovos. O problema é que não suporto homem na minha cozinha.

— Quem é você?, pergunta sua mãe sem nem saber o que está fazendo dentro daquele carro automático. 

— Sou sua filha, Elisabeth.

— Ah!, é Betinha! Ainda me lembro. Onde está sua irmã?

— Sou sua filha única — respondeu pela centésima vez só nesta semana. A mãe esquece de tudo, porém ainda acredita que o aborto, no início do casamento, não aconteceu. A filha bem-criada desce para a loja de sandálias; estava calçada com as da acompanhante da mãe. 

— Fiquem aí que já volto!

A acompanhante dá um suspiro de alívio. Já não aguenta conviver naquela família onde tudo que se faz há comentários sobre o custo. Deve ser para que não peça aumento. Se deixar esse emprego, vai ter que voltar a catar latinha na rua. Pelo menos aqui não enfrenta o sol nem tem que se prostituir com o dono do armazém — pensa ao limpar a baba descendo no canto da boca da senhorinha.

— Tive que comprar essa para você. A sua, joguei na lixeira da loja. A demora foi porque eu estava justificando que havia pegado emprestado da empregada. Se não comprasse esse par de sandálias extra, iam ficar pensando que era mentira. A acompanhante recebeu o presente com desconfiança 

— Acho que ela vai descontar no meu salário.

No elevador, deram de cara com a senhora do décimo quinto. Cumprimentaram-se.

— Parece que quando estou apressada, o elevador não anda. Pior do que a sandália quebrada foi subir com a gringa reclamando do horário. Aquela vizinha é proprietária de uma agência de viagem. Vive distante da sua terra natal e adotou um companheiro casado, com idade de ser filho dela. O zelador contou que ela sustenta a família do empregado-amante.

— Quem está usando quem? — ficou sem resposta a pergunta do senso comum.

No trajeto, a estrangeira pensa na família que deixou além-fronteira. Depois de conseguir enterrar o pai e a mãe, achou por bem ficar longe dos irmãos. Traficantes de mulheres — podia ser que a raptassem para seus bordéis. Aqui, pelo menos, ela tem um certo domínio da situação.

As clientes entraram na van. Passaram o ano inteiro economizando para conhecer as dunas.

— Que sol maravilhoso! — comentaram ao se sentarem juntas no banco do meio. Durante a viagem, passaram por um homem enchendo, na torneira, garrafões de água mineral; cães deitados, esperando que dois da mesma espécie se separassem da cópula; um sujeito correndo atrás da peruca também foi visto descendo a ladeira da ventania.

Na praia, alugaram outro veículo para o passeio. Fizeram fotos juntas em frente a nomes grandes e coloridos para postarem nas redes. Ainda bem que o odor de urina perto da frase "AMO ESTA PRAIA" não foi registrado pela câmera. 

— Temos que almoçar.

No restaurante, havia uma garçonete que as atendeu no mesmo idioma. Ela havia sido babá no país de origem das clientes e, depois de um certo tempo, recebeu notícias de casa e precisou retornar para tomar conta do restaurante. Sua mãe, ainda de vestido preto, permanecia no comando da cozinha.

Era um pequeno negócio de família, e ela, como a única filha viva, não quis perder a oportunidade de comandá-lo. Sua experiência em terras distantes a fez trazer uma porção de beterraba e cenoura cruas, servindo como cortesia da casa — costume de onde as clientes vinham.

No pequeno palco do restaurante, a cantora homenageia as visitantes com Let It Be. Sua voz macia não a isentou da mancha na blusa decotada. Pausa para trocar de roupa. O filho de três meses ficou em casa. Havia acordado de madrugada para armazenar o excedente do leite materno. Mesmo assim, não tem como evitar que escorra a cada hora que o bebê deve se alimentar.

— Artista também sofre — pensou ao voltar para o palco, tendo consciência da ligação existente entre ela e o filho, expressa pela nódoa na blusa.

 

Heraldo Lins Marinho Dantas – Natal/RN, 06.09.2025 - 08h48min.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, MINHA GRATIDÃO (Gilberto Cardoso dos Santos)

 


 

A LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO, MINHA GRATIDÃO

(Gilberto Cardoso dos Santos)

 

Vocês não fazem ideia do quanto Luís Fernando Veríssimo foi importante em minha formação e carreira.

Não corri muito, é verdade, não fui muito longe, mas se dei algum passo  gigante para mim, teve muito a ver com Luís Fernando Veríssimo.

Acertadíssima foi a decisão da Editora Ática quando, na década de 70, lançou a coleção “Crônicas para gostar de ler”, livros que traziam textos dele. Foi através dessa coleção que entrei em contato com sua escrita, e foi encanto à primeira vista.

Para gostar de ler, nada melhor que seus textos curtos, concisos e bem-humorados. Não à toa, ele se destacava entre os escritores que compunham as coletâneas.

Durante o curso de Letras e de Especialização, vez por outra um professor trazia algo dele para nossa análise e a aula se tornava excelente. Nas apresentações em grupo do Mestrado, lembro-me de uma colega que trabalhou a crônica “Aquilo”, e o texto virou mote para diversas piadas internas durante o restante do curso. A dita mestranda ganhou o carinhoso apelido de Quequinha, advindo da crônica "Inimigos", finalizada pelo pronome "aquilo".

Mas foi através do filólogo Celso Pedro Luft, em seu livro “Língua e Liberdade” que descobri ser Luís Fernando Veríssimo bem mais que um semeador de riso. Trata-se de um ensaio em que Luft toma como base a crônica “O gigolô das palavras” e a disseca com o respeito de um pregador que faz exegese de um capítulo bíblico. Nesse texto, excepcionalmente, sem pretensão primária de fazer o leitor rir, Veríssimo fala de si mesmo e relata um episódio envolvendo alunos que foram entrevistá-lo a respeito da importância da aprendizagem de regras gramaticais. Nada é supérfluo neste relato e cada linha merece reflexão. O ensaio, do começo ao fim, parafraseia e tenta explicar e ratificar o que disse o cronista.

Não foi pequena a surpresa ver Luft, um autor de gramáticas, dando aval a um texto que, aparentemente, minimiza a importância do ensino tradicional. Mas ele não se limita a ridicularizar estratégias ineficazes. Aponta caminhos. Esta crônica, recomendada e analisada por Luft, deu-me um norte quanto às práticas de ensino.

Não apenas isso: diante de alunos com pouco ou nenhum interesse pela leitura, vez por outra recorria a Veríssimo. Sempre obtive êxito em captar a atenção ao trazer textos dele. A crônica “O lixo”, por exemplo. Fazia apostilas com ela e outras. Por se tratar de um texto dialogado, eu dava oportunidade para que alunos assumissem as vozes e apresentassem a conversa para o restante da turma. Os mais tímidos criavam coragem e também queriam participar. O texto era lido à exaustão e seria repetido em aulas subsequentes, se dependesse deles.

Ao optar por livros didáticos, deparar-me com textos dele era um importante fator, pois sabia do impacto que teriam eles na aprendizagem.

Em busca de fruição literária, sempre que recorri a esse autor, não me decepcionei. Li muita coisa dele, inclusive alguns romances. Em praticamente tudo que li, no mínimo dei boas risadas e me surpreendi com a criatividade.

Por todas estas razões, encerro reiterando o que laconicamente expressei no título: Obrigado, LFV! Você disse que morreria sem poder realizar seu sonho de não morrer nunca. No entanto, continuará a viver no coração de seus milhões de leitores, na memória daqueles em quem despertou o gosto pela leitura. Grato sou por sua contribuição para que me tornasse escritor. Minha gratidão por ter me permitido ver o mundo sob sua ótica e por retratar a vida com tanta leveza e profundidade. D.E.P!


Gilberto Cardoso dos Santos

Contatos do autor: Fone 84 999017248;  Gmail, Instagram e Facebook: gcarsantos


Livros de Gilberto Cardoso