quinta-feira, 30 de maio de 2024

TODOS PASSÍVEIS DE ESCLEROSE


TODOS PASSÍVEIS DE ESCLEROSE

 

Três horas da madrugada. Ao longe, relâmpagos e trovões. Ali perto, uma luz acesa dá testemunho de que alguém está insatisfeito com a doença atingindo a família.

O relógio foi consultado pelo caduco que levantou-se, vestiu uma camisa de mangas compridas, ensacou na cueca, calçou as botas e disse: vamos? Vá dormir, disse a mulher sorrindo com o mal de Alzheimer instalado naquela cabeça esquecida de colocar as calças, e que agora só lembra de olhar para o pulso consultando a hora de ir para o bar do amigo.

Os pintos, no quintal, servem para lhe entreter piando por farelo de milho todas as manhãs antes dele ir para o passeio matinal. É a vida amortecida pelos acontecimentos que fogem do controle. Ele não bebe mais, até porque nem sabe que já bebeu em farras memoráveis onde mandava fazer fila para distribuir notas de dez.

Apagam a lâmpada para ele. Em seus pesadelos, está montado em uma motocicleta rodeado de cães latindo atrás. Fugiu por uma estrada sem fim, e lá onde só se vê árvores trançadas e escuras estreitando o caminho, ele para. Uma mulher de branco vem recebê-lo na entrada da cabana oferecendo-lhe algo escuro. Ele bebe sem reconhecer o gosto do chocolate quente que tanto apreciava em minúsculas xícaras nas lojas especializadas no fino prazer. Senta-se junto com outras pessoas de branco em um círculo, silenciosas.

Nas telhas da casa onde sua mulher o observa ressonar, bate chuva forte. Ela enxuga as lágrimas e deita-se virada para o outro lado da cama. Em sua vigília constante, planeja o que fazer para suportar a escassez de tudo. Os tempos mudaram, diz para si. Será que vou suportar ele assim? Um abrigo para idosos já lhe foi oferecido. Ela tem planos para asfixiá-lo com travesseiro, mas teme ser descoberta.

Debaixo da marquise da loja em frente, um mendigo não consegue dormir com o frio ultrapassando seu cobertor furado. A água gelada da chuva torrencial chega-lhe sem piedade. O gato que o acompanha está prestes a sucumbir de fome. Naquela madrugada, ninguém escapa do frio de cinco graus.

Do outro lado da cidade, uma adolescente levanta-se agasalhada para ir ao banheiro. Um aquecedor lhe deixa mais confortável do que o mendigo. Ela acende a lâmpada e se olha no espelho querendo fugir de casa com o primeiro namorado, mas o pai já explicou sobre as dificuldades da vida usando o mendigo como exemplo de quem não preza pela união familiar. Ela, assim com tantas outras, segue sendo educada pelo medo.

Distante, o gato estremece e morre sem que o mendigo se dê conta. O caduco acorda procurando pelo relógio. A mulher já saiu para o trabalho de diarista e deixou a porta fechada. Ele já não se lembra como abri-la e se empenha na única coisa que faz bem: olhar os ponteiros do relógio girando.

 

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 30.05.2024 - 04h23min.


2 comentários:

  1. “Todos Passíveis de Esclerose” nos lembra da nossa própria mortalidade e da importância de valorizar cada momento que temos. Parabéns ao autor. - Gilberto Cardoso

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