TERAPIAS NO TRABALHO
Na encruzilhada dos porcelanatos, imagina-se que há uma estrada natural de formigas. Por motivos óbvios de exigência exagerada, a mulher do pano passa duas vezes ao dia o rodo desinfetante. Nem alma deles aparece, se é que insetos têm alma.
Outros possíveis caminhos desaparecem por debaixo dos armários, mesas e cadeiras arrumadas quase a não caber mais ninguém, mesmo sendo ponto de lotação de quatro funcionários.
A recepcionista reclama que seu marido disse que ela estava ficando velha para usar aquele vestido preto colado às ancas largas onde resquícios de mulher sedutora ainda resistem. Nada me abala, disse ela contando amargurada o anúncio feito pelo homem ausente da alcova há mais de uma década. Tem outra fora de casa, recomeça a ladainha conhecida por todos que dela se aproximam.
De repente, a porta se abre e a mulher do marido infiel adentra novamente querendo uma cópia na impressora. Enquanto mexe no painel da máquina, conta que ele está cirurgiado. Passei a noite no hospital, diz com a voz embargada procurando na luz do painel da máquina a solução para suas dúvidas de como prosseguir amando um homem que só lhe dá desprezo. Debaixo da bancada, há uma lixeira cabendo o lenço umedecido que ela deposita depois de enxugar os olhos.
Um homem chega com pacotes debaixo das mãos. São vinte e seis celulares e dezoito chips apreendidos na cadeia pública, há sete anos, e jogados nas gavetas da burocracia emperrada pela má vontade. É na delegacia do bairro que deve ser entregue. Vou ligar para o chefe de gabinete saindo frustrado sem a linha que tanto almejava para mostrar com quem estavam falando.
Um outro, com discurso enraizado em maratonas, mostra o aplicativo de corridas com o corri ontem cinco quilômetros marcando a hora da sua saída e o percurso arrodeando a quadra, tudo registrado para não lhe deixar mentir.
Uma caixa vermelha de papelão em cima do armário para quem não sabe sua utilidade, mas pode-se imaginar que alguém da sala é acumuladora trazendo esse distúrbio para o ambiente. Uma pequena amostra das manias humanas desfila naquela sala sem nem precisar de mais nada para estudar as diferentes personalidades presentes onde quer que se vá.
Num outro balde de lixo, duas caixinhas de som dão a impressão de que estão sendo descartadas. Nada disso, disse a chefe para o aproveitador querendo levá-las para casa. É porque não temos onde guardá-las.
Mais uma vez, a loira chega perguntando se ela é de difícil convivência, pois o marido moribundo destilou essas palavras em sua direção. Já que você perguntou, escute. Eu sou de escutar. Não tenho estudo, mas leio bastante e de tudo eu sei um pouco. Ele disse que quando eu falo já é querendo brigar e...blá blá blá... e blá blá blá por cinco minutos...Sim!, diga o que você ia dizer!, acabando de provar que o marido tem razão.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 18.05.2024 - 06h10min.
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