FOI O VENTO QUE TROUXE
Os espíritos estavam numa tarde regada a café e bolacha redonda papeando sobre quais as melhores opções para reencarnar. Acho que quero voltar sendo borboleta. Por quê?, perguntou um espírito que vivia tocando sanfona. Bem, acho que é a melhor opção de todas porque não preciso trabalhar além de poder admirar as flores, o céu... E o bico dos predadores, saltou de lá um espírito de passarinho. Você tenha cuidado com as garras do gavião, saiu em defesa do simpatizante da borboleta o espírito de porco. Risadas ecoaram na ponta da fila onde estavam esperando a nomeação específica.
Havia muitos terminais como aquele cheio de almas mal-humoradas vendo a hora serem destinadas para tartaruga. Uma que havia vivido duzentos anos disse que ser tartaruga não é tão mal quanto aparentava ser. Claro que elas não sabem dançar funk, mas isso não as impede de ter lá seu lugar no livro dos recordes como o animal que mais vive. Mas isso é lá vida! Passar por ela nadando e nadando sem nem poder tomar cachaça, intrometeu-se um espírito de alcoólatra. Lá vem você se metendo onde não é chamado, retrucou um espírito de professora.
Pegando os farelos das bolachas estava um espírito de formiga de açúcar daquelas bem miudinhas que enche o saco das donas de casa. Eu fui dona de casa e nunca tive problemas com formigas. Eu danava veneno... Ah!, então foi você que me matou. Deve ter sido, mas o que é que tem? Quando eu voltar vou continuar a fazer o mesmo. Calma aí, interferiu o gestor das almas. Vou colocar você como formiga e ela como dona de casa para ver se é bom. Ah, não! Não aceito porque tenho imunidade espiritual e só volto dentro do meu naipe de possibilidades, além de que aqui vigora o verdadeiro livre arbítrio. Só vou ser o que eu quero ser, e ponto final. Já que você tem ódio de formiga, que tal voltar sendo tamanduá? Não vejo nenhuma vantagem em trocar de lugar. Se eu fosse nomeada cachorro de madame talvez eu aceitasse só para poder ouvir as últimas fofocas e não ter que aturar um marido que lê jornal no sofá.
Uma alma que chegava da viagem de viva lamentava-se de ter deixado o comando de mais de um milhão de operárias. Pior fui eu, dizia um ricão descendente de uma das cinco famílias de humanos que mandam no sistema financeiro mundial. Deixei fortunas nos cofres das instituições financeiras, no entanto você era apenas uma abelha rainha que não fazia nada além de procriar. E você apenas sugava o suor dos outros. Eu dei duro especulando no mundo inteiro. É, mas você não sabe o que é botar ovos sem ter tempo de colocar pomada para assaduras. Um espírito de farmacêutico disse que se voltassem juntos ele iria se preocupar em fazer uma pomada para as partes assadas das abelhas, porém o espirituoso Noé chegou dizendo que isso já existia no tempo que os bichos falavam, e que na sua arca continha, no saco de primeiros socorros, tal pomada. Isso é um absurdo, disse um espírito que preferiu não se identificar. Absurdo o quê? Essa conversa de pomada para as partes das abelhas. Não toque nesse assunto senão os tradicionais vão achar que estamos apelando. É a mesma coisa de falar de um pé de pato, a diferença é que essa parte anatômica está relacionada com o feio e foi assim que surgiu a vergonha.
Lá no mundo espiritual isso nunca foi importante, por isso a conversa continuou de onde havia parado na voz do espírito de barba branca: muitos dos conhecimentos foram perdidos com a enchente, mas saiba que até existia um relógio no céu informando a hora e existia também um painel escrito pelas nuvens anunciando se ia chover ou não, ou algum tipo de peste se aproximando. Tudo era registrado no céu tipo uma lousa usada pelos arquitetos do planeta. Isso durou alguns anos até se esgotar a validade da terra e começar a deterioração. Isso é papo de alma penada que passou a vida inteira sendo palhaço no circo dos animais. Peraí, disse o espírito do macaco informando que não era palhaço coisa nenhuma, apenas pulava tentando ganhar bananas. Alto lá, alguém escondido por trás de um lençol branco falou que banana não tem espírito. Tenho sim, pois sou um ser vivo como qualquer outro. Nada disso, você não tem sistema digestivo e nem sente dor. Quem foi que disse? O problema é que nosso sistema funciona diferente dos animais e ninguém ainda descobriu onde é o nosso, entretanto isso não quer dizer que não temos. Uma conversa dessa só pode acontecer aqui no nosso mundo, já que no mundo material tudo tem que ser pesado e medido senão não tem validade. É por isso que lá naquela mesquinhez de mundo há tanta injustiça. Quem disse isso?, perguntou o leitor provando que tudo tem que ter uma organização para que ele possa continuar seguindo o raciocínio dos espíritos, inclusive colocando travessão para definir a mudança de interlocutor sob ameaça de abandonar a leitura. Não importa quem disse o quê, retrucou o autor, o importante é manter o fluxo de pensamento e quem quiser entender esse mundo espiritual, que se torne um dos nossos, contudo nunca deixemos o café esfriar. Que conversa mais sem pé nem cabeça, novamente o leitor de pronunciou sem entender mais nada.
Nesse momento a sirene soou e todos os espíritos abandonaram a conversa fiada e foram se posicionar para a próxima leva de reencarnações. Na nota do autor, que também era um espírito, ficou registrado: ainda tem gente que não acredita nessa teoria proposta por Allan Kardec, e continuou para responder ao leitor dizendo que como existe conversa específica em cada grupo social, existe conversa de espíritos que só eles mesmos entendem. Entendeu?
Heraldo Lins Marinho Dantas
Guarabira/RN, 13.02.2024 - 07h14min.
Muito bomk, Heraldo! O desfecho desse conto ressalta a inevitabilidade do ciclo da vida e a constante busca por entendimento espiritual.
ResponderExcluirEm suma, "Foi o Vento que Trouxe" é um texto cativante que mistura humor, reflexão espiritual e crítica social de forma envolvente e perspicaz. (Gilberto Cardoso)