VIAGEM INTRACEREBRAL
Pensava no que havia sonhado há pouco. Claro que sua vida estava às mil maravilhas, mas ao fechar os olhos, nem tanto.
Uma multidão o atacou conduzindo-o para uma tumba sagrada. Lá, ainda com vida, seu sangue foi retirado para ressuscitar as múmias que saíam em busca de pele para se cobrir. Ele era mantido preso testemunhando os esqueletos arrancarem a pele dos seus filhos e as usarem como vestimentas naturais. Não havia mistério nem suspense, apenas arrancavam igual fazemos com carneiros abatidos. Depois de soltas, as crianças tentavam fugir das feras atraídas por sangue fresco, mas sem sucesso. As feras os mastigavam e olhavam para ele com ar de ironia. Se a natureza tivesse dado aos animais o dom de sorrir, eu diria que estavam sorrindo.
Seu poder consistia em se manter olhando aquelas cenas, e quando seus olhos eram fechados pelas mãos trêmulas, acontecia de sentir dores terríveis. Essas dores o fizeram acordar, porém os pesadelos invadiram o plano real e ele permanecia acorrentado entre duas pedras grandes na entrada do coliseu. O povo pedia e alguns soldados o chicoteavam.
O medo e a dor transformou-se em ira e ele conseguiu arrebentar as correntes. As duas pedras rolaram quando seu cabelo cresceu transformando-o em Sansão. Dalila estava bem pertinho e o beijou para acalmá-lo, o que de início deu um bom resultado, porém quando ela lhe ofereceu uma maçã envenenada, ele logo percebeu que aquela fruta estava vindo da plantação do mesmo fornecedor que abastecia as bruxas inimigas da bela adormecida. O pau cantou. Pela primeira vez na história, ele conseguiu tirar o estigma de comandado pela mulher.
Depois de repreender Dalila, pulou para dentro de uma embarcação e foi falar com o comandante que acatou seu pedido de emprego afirmando que o único trabalho disponível no momento era limpar as jaulas dos animais, pois seus filhos e noras jamais iriam se rebaixar a um trabalho tão mesquinho como aquele. Ele aceitou trabalhar em troca de comida, mas rapidamente desistiu quando os macacos passaram a jogar fezes nele e ainda davam cambalhotas comemorando quando acertavam na sua cara.
Claro que ele foi falar novamente com o comandante. Aguardou quase três dias na recepção até que preferiu invadir o escritório do velho barbudo. Noé estava se divertindo com algumas mulheres que trocaram a passagem clandestina por massagens nos pés. Ao ser interrompido, o comandante, juntamente com a tripulação, lhe amarrou e o obrigou a andar na prancha. Ao cair no mar, foi socorrido por Jonas em seu iate em forma de baleia.
O profeta mostrou-se um bom anfitrião levando-o para uma sala apelidada de jaula dos leões. Havia umas jovens pintadas de leoas que fizeram a festa com aquele convidado. A diversão ia até bem quando de repente um submarino atacou a baleia de forma que só ele ficou à deriva. Nem precisou esperar que as águas baixassem, pois um navio de guerra o resgatou. Quando lhe içaram e o despejaram no convés, ele percebeu que toda a tripulação usava um bigode curto e preto. Todos se apresentaram como sendo Hitler, e foi aí que ele percebeu tratar-se de uma reprodução em massa e que ele estaria condenado se não aceitasse usar aquele bigode.
Enquanto o bigode crescia, ele foi deportado para um cercado e obrigado a fazer bombas. O bigode cresceu branco e longo, e como o padrão era bigode curto e preto, teve que pintá-lo e raspar o excesso para ser aceito na turma da raça ariana. Voltou para a corte satisfeitíssimo por estar entre os poderosos, porém numa festa organizada pelo chefe onde o maior divertimento era afogar as pessoas, o dele largou a tinta, e então ele foi levado para a câmera de gás. Ao chegar lá, ouviu um soldado cantando: "... o gás acabou, tem pouca comida, acabou meu dinheiro..." Nessa hora, uma bomba estourou e alguém reclamou que haviam errado o alvo, já que era para ser em Hiroshima. Tudo bem, vou acertar na próxima, disse uma criatura com um tridente nas mãos e chifres na cabeça.
Até hoje, o homem tenta permanecer no pesadelo com medo de acordar e encontrar os pessimistas dizendo que a vida não está fácil.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 10.12.2023- 11h10min.
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