sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

PEDAÇOS DA ILHA

 


PEDAÇOS DA ILHA 


O dia está frio. Espirrei. As nuvens carregadas, pesadas por assim dizer, mantêm uma luz triste a ponto de surgir um pensamento em retirar a pele que está sobrando nos cotovelos. Na dobra, ali onde o braço faz a curva. Precisamos ter cuidado para não impedir os movimentos, disse o cirurgião esfregando as mãos. 

Abri portas e janelas. Estava começando a ficar quente. O vento soprava vindo do leste. Para onde vai? Não sei dizer e nem consegui que ele me respondesse.

Estou sentado na cadeira que custa milhões. Cada balanço não sai por menos de mil. As pernas acompanham esse movimento, logo elas que um dia estiveram engessadas. A garrafa d’água ao lado não diz nada como se era de esperar, já que garrafa que fala é suspeita. Abaixo, malas marrons guardam um passado que teima em ficar presente.

Dou uma pausa na cena do homem chorando com os três filhos mortos afogados. A mulher assassinada pelo próprio marido por ter sido a autora do massacre. Ela é doente, era, melhor dizendo. Respiro aliviado. Não estou sozinho em matéria de problemas. 

Outra mulher enfiou o garfo na mão do filho só porque ele tentou pegar um pedaço de pão em cima da mesa. Será que já é costumeiro esse tipo de tortura? Fiquei com vontade de interferir, mas o filho é dela, pensei enxugando a angústia do rosto. 

Espirrei mais uma vez. Resfriado, pode ser assim chamado. A calça está apertando nas virilhas. Sim, é isso mesmo. Existe a forma também no singular, mas no meu caso são dos dois lados mesmo. Não espirrei. Que pena. Gosto de dizer que espirrei, pois é uma prova que não estou tendo infarto além de servirem para preencher vazios. O vazio na alma é tão grande que até o espirro eu uso como um acontecimento extraordinário.

Há um pincel no canto do móvel, aqui bem pertinho. O que é que tem? Nada, só estou dizendo que há um pincel. Ninguém quer saber disso. Eu sei que mesmo assim o pincel não desapareceu. Chegou a chata da minha consciência criticando tudo que faço ou digo. 

O cursor do computador pisca me fazendo lembrar da época natalina com tantas luzes pela cidade. Que tal um projeto para embelezar a cidade todos os dias do ano? A beleza cansa. Só se cansar os já cansados por natureza. É melhor fazer roupas novas para os defuntos desenterrando-os e vestindo-os novamente. Para que isso? O dono da fábrica de roupas é amigo do rei e é preciso dar vazão à produção igual ao café no início do século vinte. Cuidado com o que fala. Eu não falo, apenas penso e os dedos registram. Se a culpa é deles, que tal arrancá-los ou trancafiá-los? Se assim for, você vai junto a não ser que queira ficar fora da cadeia longe dos dedos. Nessa hora, entra a capacidade de sentir empatia pelos próprios membros. Já pensou se a sociedade fosse como um corpo!? Quem sofresse uma pena levava os outros juntos. Não haveria egoísmo. Vamos para a realidade vestida e cozinhada. Mas o ditado é realidade nua e crua. A sua realidade deve ser impudica. A minha está vestida por ter feito catequese para bloquear a vontade de andar nua, por isso está vestida e bem temperada com o conhecimento dos bons costumes. 

Respiro raso. Uma respiração que chamam de meia-respiração. Se respirasse fundo iam dizer que era chavão, pois um simples respirar nunca foi digno de ser registrado, a não ser que seja fundo. Posso respirar novamente? Só se for profundamente. Então deixe. Vou ao banheiro. Fazer o quê? Expulsar os soldados que já cumpriram com sua missão. 

Olho o relógio. Já está na hora. De quê? De tudo. Está na hora de nascer, de morrer, de amar, odiar, almoçar, dormir... o tempo é de todos. Olho para o olho e não o vejo. Vejo a mão, o pé, mas o olho muito mais perto do meu olhar não consigo enxergá-lo. Deve ser por isso que devemos nos afastar da produção artística para perceber se ela é arte ou lixo. Mas isso não tem importância se o artista ainda não aprendeu a sofrer.   


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 15.12.2023 - 15h05min.





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