terça-feira, 14 de novembro de 2023

DIFERENTES SÃO OS OUTROS

 




DIFERENTES SÃO OS OUTROS


Ao fundo, a torre da igreja destaca-se depois do espelho do lago. Algumas casas, entre as árvores e até na beira d'água, contribuem para aquela paisagem se tornar mista. 

O badalar do sino anunciava que haveria missa dali a pouco. Embarcações chegavam ao píer onde seus ocupantes tinham o propósito de assistir ao ritual. Era um domingo ensolarado de final de primavera com crianças brincando em frente aos casarões antigos. Como era bom sentir o cheiro de cidade pequena onde não existe nenhuma autoestrada para atrapalhar. 

Os jovens querem ir embora e os velhos tentam puxá-los para a mesma vidinha tranquila às quais foram se adaptando. Uma vendedora de coentro, uma professora de piano, todas as profissões são únicas. Nada de concorrência, já que não há demanda para tanto. O médico, como se era de esperar, conversa com seus pacientes o quanto quiser sem se preocupar com fila ou hora marcada. Uma doença de cada tipo para não tirar a fama de quem a possui. Um só escândalo da empregada que tivera dois gêmeos com o namorado que fugiu com a patroa. Acontece ao contrário, naquela cidadezinha onde só se dança valsa a noite inteira.  

Quando há discursos, até para os vocativos, senhoras e senhores, já se bate palmas. Os rostos conhecidos petrificavam-se com o passar dos anos. As imagens das idosas, com caras de meninas de tanto serem vistas, jamais sofrem modificações. O tempo devagarinho se encarrega de arrancar as marcas da velhice. 

Um dos maiores divertimentos é observar o outro ressonar. Fazem roda ao lado de um dormindo. Será que está sonhando? Não, só daqui a pouco é que começa. Ficam até de madrugada tomando nota e café ao som dos mais intensos roncos no clube que leva o mesmo nome. Quem dorme está perto dos espíritos, por isso as tentativas de encontrar o elo entre o mundo real e o misterioso através dos sonâmbulos.   

O trem passa distante, e é uma festa quando alguém vai ou vem de viagem. Conte as novidades por onde você andou! Naquela noite, ninguém arreda o pé ouvindo o relatório do recém-chegado, e quanto mais tempo fora mais gente para escutá-lo. 

O teatro permanece fechado por falta de atores. Para ser franco, só houve espetáculo no dia da inauguração. Uma casa com palco. Na época do carvão, ainda havia bares, hoje só se toma algo com quem joga cartas. Chuva, frio, calor, são motivos para debates. Suicídio, não. Crime jamais. Se alguém desafia outro, o desafiado pede para só começar a peleja depois do banho, e não volta. Perder tempo com banalidades é contra o bom-senso. 

Quando alguém falece, o velório dura a semana inteira. Ao redor do caixão menino é batizado, comemora-se aniversário, corre-se sorteio e bingo na sala dos eventos mortuários. Há o clube dos defuntos onde os eventos acontecem somente quando tem morto sendo velado, pois acreditam que as manifestações culturais só é para acontecer no limiar da inspiração.   


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 14.11.2023 - 06h38min.



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