quinta-feira, 9 de novembro de 2023

COISAS QUE NÃO SOSSEGAM

 


COISAS QUE NÃO SOSSEGAM


Perto da janela, estava uma mesa pequena, feita de madeira rústica, sem toalha, com duas cadeiras sendo ocupadas pelo casal. Um bule verde com suporte fumegava perto de alguns pratos, biscoitos e pão assado. O claro ameno do final do dia ainda testemunhava aquela ceia entristecida.

Você está muito calada ultimamente! Ela continuou cortando o bife sem olhar para o marido. Eu quero te pedir perdão. O barulho dos lábios que sugavam o café não atrapalhava o diálogo. Você não tem culpa. Mesmo assim, desculpe-me, pois sei que você queria muito. Tudo bem! Ele desviou o olhar para o pátio onde estavam algumas reses. Aquela novilha parida vai ser vendida amanhã, pensava ele tentando mudar o foco. Um guarda louça, de dois andares, permanecia com uma das portas aberta. 

Se eu nunca conseguir segurar, você me abandona? Ele fitou os dois olhos lacrimejantes à sua frente. Não, acho que não. Toda tarde vinha à tona o mesmo assunto. Os lábios dela tremiam um pouco e o nariz estava sendo secado com um guardanapo. Na garrafa vazia de vinho, uma abelha entrava e saía enquanto ele permanecia falando com o olhar fixo além da janela aberta. Não se preocupe com isso. Se tiver de ser será. Ela ficou catando os farelos de cima da mesa com as pontas dos dedos, lentamente. Eu também quero muito, mas não mando no meu corpo.

Uma formiga patinava investigando os grãos de açúcar derramados acidentalmente na mesa. O marido examinava, com o tato, o desenho em alto-relevo do saleiro. Acho que amanhã vai amanhecer chovendo. Tomara! Os chocalhos das ovelhas concorriam com os das vacas e alguns dentes-de-leão passavam ao lado do pé de jabuticaba.   

Amanhã tenho que voltar ao médico. A família dela se mostrou muito compreensiva, principalmente aquela que a acompanhou na internação. Vou precisar ir também? Não, só precisa arrear o cavalo. Eu e minha irmã vamos de charrete. Algumas nuvens escuras já davam mostra de que a chuva não deixaria os meteorologistas na mão.  

Ainda dói? Um pouco. São quinze dias de repouso e só faz uma semana que saí do hospital. Ele não gostava de falar naquilo, mas por falta de assunto... Vou precisar de uma cinta. Tudo para ela é comprar, comprar, pensava ele lembrando-se que o dinheiro da novilha já estava quase todo comprometido. Massageou a parte de trás da própria cabeça. Fechou os olhos e ficou acompanhando a sensação de paz provocada pela mão no couro cabeludo descendo pelo pescoço. 

O canto dos tetéus foi ouvido ao longe. Mais um pouco de café? Não, já estou satisfeito. Abriu os olhos e se deu conta que ela já estava mais contente. Toda vez que a enxergava triste, também ficava. Nos últimos dias tenho tido pesadelos horríveis. Você sempre teve pesadelos. Uma coruja entrou pela janela voando diretamente para o sótão. Já era freguesa da casa caçando ratos toda tarde. Ainda está tomando o remédio? Termina amanhã, por isso tenho que ir fazer a revisão. Ele levantou-se dando por encerrado o assunto relativo aos abortos espontâneos.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 09.11. 2023 - 10h25min.



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