segunda-feira, 9 de outubro de 2023

NÃO ADIANTA SE ESCONDER

 


NÃO ADIANTA SE ESCONDER


Já neste início, eu pensei em dizer: pronto, terminei. Apesar de estar a mil, estava evitando postar, mas percebi que deixar de escrever é como se eu estivesse perdendo os ossos. Num dia uma perna, no outro um braço até desaparecer por completo. Fico querendo sair desse vício, por isso já formei o EA (escritores anônimos), mas sempre deixo de ir às reuniões. 

Lá nos nossos encontros, falamos dos impulsos em registrar tudo. É uma mania que a maioria fica triste em não poder ter uma vida despreocupada. A todo momento uma observação mais acentuada nos leva para a página. O mundo perde o colorido quando não se fala do que está se passando pelo canal do cérebro. Parece que existe toda uma equipe dentro de cada cérebro formatando ideias para serem divulgadas, e ai de quem não se expressar. Fica cabisbaixo chegando a procurar outros psicóticos para aliviar essa tensão.  

Escrever é tão viciante que tem gente que até paga para ver suas palavras juntas em uma obra. Esses são os que não querem nem ouvir falar que são viciados em uma página em branco. É como se fosse um arquiteto querendo transformar tudo em paisagismo, já que ambos defendem que sempre há uma maneira de preencher um espaço para torná-lo mais admirável. Ainda bem que todos os membros do grupo EA estão de férias, senão iriam me condenar por estar aqui falando escondido. 

A primeira coisa que acontece com quem tenta reprimir esses impulsos, são os pesadelos. Começa-se a sonhar pesado dando a impressão que se está na cena de corpo e alma. Ontem sonhei com as letras correndo atrás de mim. Eu olhava para trás e avistava aquela multidão de letras em disparada. Havia uma junção de PP, EE, GG e AA estimulando as outras para me pegar. Pega! Pega!, gritavam trazendo em tronos a caneta, notebook e celulares dizendo: ele não tem nenhuma justificativa para correr do compromisso de nos juntar em uma página. 

Quando as letras não estão sendo usadas elas entram em depressão recebendo o apelido de letras-sem-páginas ou avulsas. É uma desonra para elas ficarem ao léu. Às vezes, são utilizadas pelas crianças para decorá-las, mas elas gostam mesmo é de ficar fazendo parte do texto. A todo instante, torcem para serem juntadas, e até já flagrei muitas consoantes bajulando as vogais para não perderem a oportunidade de formar palavras quando necessário for. 

A cada instante que vou para as ruas, vejo muitas delas reunindo-se ao redor de objetos e ações. Se observo uma pessoa andando, eu também percebo um montão de letras se formando para dizer que ela está andando. Ao parar, sai de cena as letras de andando para entrar as de parou. Em alto-mar vivem as de nadando, de navegando e assim por diante. Nosso mundo é repleto de letras e palavras que já, de tanto uso, vivem juntas. 

Quando amanhece o dia, as letras do bom-dia deixam o descanso e vão trabalhar até às doze horas. Impreterivelmente, entregam o plantão aos boas-tardes, e estes, naturalmente, para as boas-noites. Quando não estão sendo faladas, essas palavras ficam num hotel cinco estrela esperando a hora para voltarem ao trabalho. Nunca se cansam, mas ficam danadas quando são trocadas por um oi.    


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 09.01.2023 – 09h05min.



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