quinta-feira, 21 de setembro de 2023

ATRÁS DO RECONHECIMENTO

 


ATRÁS DO RECONHECIMENTO 


Nasci desprovida de pernas e braços. Até que foi fácil deslizar para fora da linha de produção, porém suportar me manter integrada ao meio social, não. Passava a maior parte do tempo assistindo TV quase como abandonada. Aqui e acolá, é que me tiravam de um lugar para outro, limpavam-me e me devolviam para uma caixa bem arrumada. Eu não chorava, mas sempre ouvia choros de órfãos. 

O local onde me colocaram, depois que nasci, era uma loja de artefatos militares. Eu ficava olhando as pessoas comprarem escopetas, pistolas etc. Chovia, fazia sol e eu lá sentindo todo tipo de intempéries sem ao menos poder reclamar. Minha residência ficava em Dallas, e foi de lá que o mundo me conheceu. Antes, ninguém nunca havia ouvido falar de mim. Sempre, de um presidente que visitava cidades em carro aberto. Isso foi nos anos de 1963 quando os Beatles já eram bem conhecidos. Todo mundo corria atrás do sucesso, inclusive eu. Claro que eu era diferente de todas, mas isso não me fez desistir de ser alguém. 

Raul Seixas já vinha também trilhando seu caminho numa febre compartilhada por João Gilberto. O mundo estava fertilizando acontecimentos culturais nunca antes experimentados. O tropicalismo aconteceu alguns poucos anos depois, no entanto reflexo dessa fertilizada década. Foi nela que as mulheres tocaram fogo em sutiãs, cílios postiços e saltos altos. Nessa efervescência cultural, surgiu também Elvis Presley fazendo a mulherada delirar com seu requebrado sensual. Os pais quebravam as TVs para que suas filhinhas, educadas para serem mães, não fugissem de casa para o movimento hippie. Eu vendo tudo aquilo e querendo me integrar de uma forma ou de outra, mas paralisada pelo medo de ser rejeitada. 

Noites passadas em claro sonhando com o estrelato. Eu tinha inveja de Marilyn Monroe com seu vestido branco esvoaçante, e essa inveja cresceu mais ainda quando eu soube que ela tinha tudo para se tornar um dos maiores símbolos sexuais de todos os tempos. Até com o presidente popular ela teve um caso, e eu lá no meu canto mastigando minhas mágoas. 

Até que um dia, fui convidada para sair daquele lugar deprimente. Fiquei feliz, pois sabia que o mundo ficaria estarrecido com minha performance. O homem que me deu a mão, não era normal, diziam alguns, mas agradeço à sua loucura o fato de ter me tornado famosa. Ele me levou sabendo da minha potencialidade, apesar de não me deslocar por si só. Fiquei na casa dele participando dos planos para a minha estreia. Só eu e ele naquele sexto andar ensaiando para entrarmos em cena. Então, chegou o grande dia. Lembro-me como se fosse hoje. Naquele 22 de novembro de 1963, exatamente às 12h30min, as cortinas vermelhas do corpo do presidente se abriram com minha passagem, e foi aí que fiquei popularmente conhecida como a bala que matou Kennedy.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.09.2023 - 16h17min.



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