O QUERER E O PODER
Estou grávida. Este ser aqui dentro nem dá sinais de vida e já estou ansiosa para comprar as roupas. Minhas amigas convidaram-me para um café mostrando-me tudo que uma futura mãe deve comprar, e fico sonhando com o dia de começar a fazer a decoração do quarto. Se ele morrer ao nascer, ficarei triste, mas fará parte da minha trajetória. Terei assunto para contar que não fui mãe porque a natureza assim determinou.
Mamãe sentou-se quando soube da novidade, dizendo: pelo menos para parir você presta. Mal sabia ela que foi a única forma que encontrei de chamar sua respeitosa atenção, entretanto pelo que notei o objetivo de fazê-la feliz não foi alcançado. Ela sempre foi sincera para comigo, porém mostrou-se preocupada. Deveria estar pensando: se a mãe é desleixada e vira-lata, a cria deve vir pior. Sorri a contragosto sabendo que ela estava pensando isso mesmo. Conheço mamãe desde o tempo em que me disse: tome esse remédio que você ainda não tem marido para sustentar este que arranjastes de um vagabundo. Na verdade, à época eu nem sabia realmente quem era o pai. Agora, meu marido é um homem bom, honesto e trabalhador, o defeito dele é gostar de colecionar selos, mas em comparação com meus vícios, ele ganha em disparada.
Fico imaginando como vai ser chato ficar à mercê de pessoas de branco que irão dar destino ao recém-nascido antes que eu possa decidir alguma coisa. Estarei de pernas abertas sentindo dores, a não ser que peça para que o "retirem com a ponta do bisturi," aí terei um olhar contemplativo para o bebê. Meu instinto materno será modificado e eu o verei como apenas um objeto que contribuirá para tornar meus seios caídos e murchos.
Ouço vozes dizendo que ele será prostituído igual a mim. Um homem que venderá seu corpo para as madames se fartarem com carne "fresca." Quando eu estiver dando de mamar, pensarei em quantos outros seios ele lamberá apenas para dar prazer às mulheres como fiz com os meus em troca de alguns cifrões.
Aqui, no gozo dos privilégios disponibilizado pelo meu marido, grito calada por estar seguindo o mesmo caminho de todas as mulheres incubadoras de espermatozoides prontos para irem à guerra. Se a terceira guerra explodir, aconselhar-lhe-ei a ir se matar nos campos. É para isso que servem.
Se for mulher, orientarei para não seguir o mesmo caminho que trilhei aos doze anos quando já estava sendo usada. Seria até cômico dizer que é melhor dar e dar muito para se manter no poder do que ficar no anonimato, entretanto sendo mãe não posso disponibilizar esse conhecimento logo cedo para a inocente que nem sabe porquê está sendo esperada com tanta alegria num mundo corroído por tristezas.
Hoje sou da elite, mas já fui da escória com ascendentes escravos e indígenas. Deve ser por isso que tenho os cabelos lisos, motivo de fantasias só explicado por resquício de quem teve uma ama de leite preta, como no caso, meu esposo de "sangue azul."
Logo após o nascimento, passei a ser criada por pais que acharam lindos meu nariz afilado originado quando "mãe nega" foi negociada para noites de farras num paraíso de prazeres fictícios.
Na igreja, colocaram-me para cantar no coral com minha voz de soprano motivando invejas nas raquíticas brancas e mulatas balofas. Ainda bem que minha beleza contribuiu para que eu não passasse fome como meus vizinhos de cor, e até me botaram para aprender a ler e contar o necessário para ajudar na loja de outro que me alugou para ser sua ajudante, além de me pedir favores sem dizer com licença em colocar a mão onde eu achava bom.
Amanhã vou fazer um exame de rotina. Vou ver o doutor amigo do meu marido que sempre janta com a família aqui em casa. Ele me olha diferente e tenho certeza que vai querer me ver todinha com olhos além de clínico. Vou servir de estimulante para aquele casamento naufragado que só não terminou ainda porque ele usa as pacientes nos pensamentos íntimos. O doutor, que é homem bem posicionado, não vai deixar transparecer que está a me tocar com outras intenções além de paciente/médico, mas farei alguns trejeitos para que ele vá além da consulta. Sei manipular os homens com minha armadilha da beleza exótica.
Ultimamente tenho sonhado bastante com crianças. Ao ver uma nos braços de outras sou logo impulsionada a pegá-las no colo. "Ando" muito agitada. É uma animação tão grande que dá vontade de gritar, em alto falantes, que estou grávida. No meu canal, seguidores estão querendo saber os detalhes, inclusive quando estou indo ao banheiro gravo vídeos e digo como é a urina de uma grávida, as fezes, cores e consistência, provo na ponta da língua ao vivo para saberem que comigo não tem “esconderijos morais.”
Todos já sabem que matei meu pai, mas isso foi antes de completar quinze anos, fato divulgado até em jornais da Europa. Lá eles adoram notícias dos aculturados, como nos chamam. Uma aberração, disse uma das publicações querendo esconder que os “serial killers” surgiram, primeiramente, por lá.
Morrer amargurada é pior do que com má fama, por isso vou vivendo sem olhar para trás. Se amanhã eu morrer envenenada pela minha própria mãe, não tem problema. É melhor morrer do que matar porque não é fácil levar o peso de um morto nas costas. Hoje é que sinto meu pai atazanando minha vida bem mais do que quando estava vivo. Ele implicava com minha barriga de fora e as namoradinhas que eu usava para dar expansão ao meu eu masculinizado.
Orgulho-me de ter provado de tudo um pouco, e agora ser mãe é mais um passo. Não sei se existe um destino, mas se o meu futuro for dar de mamar igual uma porca, vou aceitar numa boa. Irei alimentar um infeliz que nascerá para fazer a vontade dos meus hormônios e que estará sendo enganado por muito tempo achando que a vida é fácil. Tudo vai estar em sua boca dado por uma escrava açoitada por choros irritantes sendo obrigada a limpá-lo em troca de uns sorrisos bestas. Vou dar xarope, vacina, banho... infinidade de tempo gasto com uma futura ingratidão.
Neste momento de passagem de mulher para mãe, muitos pensamentos me chegam. Lembro-me das intermináveis horas ao lado do meu marido vendo-o lançar projéteis no oceano para impressionar-me, e eu dizendo no pensamento: largue essas armas e vamos para o quarto, seu trouxa. Queria ter uma vida mais amena para criar um filho empurrado pela idade já quase fora do prazo de validade. Não duvido que muitas querem estar no meu lugar ao lado desse homem de jeito simples e calmo com cara de desamparado. Somos iguais nesse ponto, só que ele guarda e eu descarrego. Se eu fosse vingativa quanto achei que fosse, já teria ficado com o seu assessor, pois soube que meu marido, apesar de sonso, direciona “seu instrumento para as bandas” da sua gerente.
Hoje de madrugada, acordei sobressaltada com o pesadelo que tive. Sonhei que fumava cigarros feitos de dinheiro e nem me dava conta que estava flutuando acima da atmosfera me perguntando como faria para alcançar oxigênio. No sufoco, acordei com o relógio apontando a hora de fazer o teste de gravidez.
Chego à clínica às oito horas em ponto. Sou atendida. Retiram meu sangue. Aguardo ansiosa. Sai o resultado. Você está com pseudociese, diz o médico sem entrar em detalhes sobre o que isso significa.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 05.05.2023 – 16h36min.
Parir obras literárias de qualidade não é para qualquer um. Querer não é poder. Sua ciese literária, meu caro Heraldo, é de natureza psicológica, porém nunca pseudo. Mais um conto para engrandecer o nosso já rico acervo! - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirObrigado, Gilberto,
ResponderExcluire parabéns por estar fazendo tão bem o papel de motivador. Isso é muito importante para quem produz e até motiva-me a tentar me superar a cada dia.