DIA DA BOA COLHEITA
Levanto-me vagarosamente da frente do computador. Minhas mãos estão suando, o coração disparado e as "pernas tremendo de ódio." Ela faz barulho, mais uma vez, com o propósito de me desconcentrar abrindo a geladeira procurando legumes na gaveta de baixo sem muita necessidade. Já lhe havia dito por várias e várias vezes que não me perturbasse quando eu estivesse trabalhando. Ela tem o costume de me contrariar e ficar zombando da minha falta de capacidade de adaptação às repentinas mudanças na rotina.
Respiro profundamente olhando pela janela a disputa de duas galinhas por uma minhoca encontrada no caminho da água servida que sai pelo cano da pia de lavar louça. Imagino que não é só no mundo dos humanos que há dificuldades. A minhoca está no mesmo nível do insuportável barulho provocado. Nossas diferenças também se dão nas mudanças de temperatura. Enquanto gosto do calor natural do vento, ela gosta do frio cheio de fungos do ar condicionado. As luzes acesas, desnecessariamente, sou eu quem as apago recebendo o nome de mesquinho por perceber que o meio ambiente precisa da nossa contribuição. Quanto menos energia gasta, menos terras deixarão de ser inundadas e mais árvores preservadas, mas esse entendimento está longe de ser assimilado por uma garota que foi criada em "berço de ouro" e que se orgulha da mansão que permanece nas mãos da família, inclusive com os instrumentos de tortura da senzala em perfeito estado de uso.
Mudo a passada em sua direção. Escuto ela reclamando que precisa sair para fazer compras ressaltando que muitos vegetais irão para o lixo. Escuto dizer que precisa de alimentos fresquinhos e não adianta eu dizer que compre só o necessário. Parece que sente orgasmo em jogar meu dinheiro no lixo.
A indústria dos descartáveis cresce cada minuto graças a pessoas iguais a ela que encontram nas compras uma forma de terapia ocupacional. Todos os dias, a mala do carro chega cheia de tralhas que serão presenteadas para as que adoram lanchar por aqui a convite dela. Não há mais espaço para colocar roupas, brinquedos e utensílios domésticos. Ela está querendo contratar mais domésticas para o serviço na capital. Já comprei esta casa de campo para experimentar se ela deixaria de ser compulsiva, mas parece que foi pior. As dívidas se acumulam e, pelo visto, vão aumentar com os novos pets encomendados.
A participação dela nos lucros das empresas da família é bem generosa, entretanto os débitos domésticos superam em muito a receita, e isso me faz refém dos seus gastos. Os momentos a sós estão cada vez mais distantes devido ao tempo dedicado em desembalar as compras. Os olhos dela brilham ao sair em busca de mais e mais produtos. Faz anos dizendo que está comprando para montar uma loja e, para isso, já alugou dois apartamentos com o objetivo de colocar as mercadorias que permanecem com suas embalagens lacradas abarrotando quartos e salas sem que seja dado um destino lógico a tudo aquilo.
Chego à cozinha e ela se encontra abaixada com seu blá blá blá abrindo espaço para o que vem por aí. Daqui da cozinha dá para ver os passarinhos ao redor do bebedouro fazendo a festa por tão pouco. Batem as asas, saltam cantando e voltam a beber. Há uns quinze bicando o alpiste que coloquei logo cedo. Escuto-a superando o canto dos pássaros, o cantar do galo e a televisão ligada no living.
Abro a gaveta das facas. Há uma de cortar carne com o fio de cerâmica. Nunca fica sem corte. Seu tamanho se destaca entre as menores. Seu cabo com saliências se apoia bem na minha mão. Minha mulher permanece de costas e abaixada revirando tudo e jogando a maior parte do que foi comprado ontem. De cinco palavras ditas, três são de ataques contra a minha pessoa. A faca reluz na minha mão. O gato passa se esfregando em minhas pernas deixando o rabo continuar tocando-me como forma de amizade. Ficarei satisfeito por me livrar dessa tormenta. Experimento a faca nos cabelos do braço. Poderia ser usada para tirar a barba. Vejo meus caquis "madurinhos" sendo jogados no chão. Não tem problema, diz ela, daqui a pouco eu limpo, sem levantar a cabeça. Vê se faz o mingau da sua filha, seu peste. Levanto a faca. Minha filha chega à cozinha. Papai, estou com fome. Guardo a faca em cima da geladeira e vou fazer a comida da "bichinha."
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 14.05.2023 - 09h20min.
No conto "Dia da Boa Colheita", você criou uma atmosfera de tensão e desespero, ao mesmo tempo em que expôs a futilidade e a arrogância de um personagem que parece viver em um mundo à parte, insensível às consequências de seus atos. A crítica social implícita na história é pertinente e atual, e certamente convida à reflexão sobre o impacto de nossas decisões e hábitos de consumo.
ResponderExcluirÉ verdade, e obrigado por registrar seu ponto de vista. Amanhã teremos mais tentativas em marcar presença. Fico juntando um pouco daqui e de lá para ver se consigo ir expondo as boas crias, sempre preocupado em não deixar os dias passarem em "brancas nuvens."
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