domingo, 12 de março de 2023

CADA UM NA SUA



CADA UM NA SUA 


Ontem, quase não consegui falar. Hoje, piorou. Por ser domingo, toda a inspiração correu para a praia tentando se refrescar e me deixou aqui sozinho. Eu poderia ter ido junto, mas teimei em ficar. Agora, só posso contar com a solidão que adora ficar em silêncio. Comentar o silêncio da solidão é trágico porque dá logo a impressão de tristeza, o que nem sempre corresponde, mas dizer que sozinho e alegre se combinam, quase ninguém acredita. 


Os momentos longe de gente me dão a oportunidade de fazer a revisão na consciência. O que saiu errado ou certo passa nesse "filme." Às vezes, nem sempre saiu totalmente fora do controle, mas a impaciência da pessoa que se está visitando nos faz prometer cautela para a próxima visita.


Foi o que aconteceu. Visitei uma criança que sofreu cirurgia de apendicite. Vieram contar a saga da falta do diagnóstico rápido e o quanto houve de sofrimento; o técnico, responsável pela ultrassonografia abdominal, chegou atrasado mantendo mais tempo a dor na barriga do "bichinho," enfatizaram com ar sombrio; o cirurgião de plantão só apareceu por volta do meio-dia. Eu lá, vendo o quanto uma dor para tudo. A família inteira abandonou o trabalho para se revezar no leito. Isso é que é solidariedade familiar.


Lembrei-me do tempo de criança. Eu com febre avistando bicho no telhado e minha mãe saindo para trabalhar. Já dei o chá, agora é com você, disse ela batendo a porta e fechando a chave. Ali, ela estava dizendo que minhas chances de me tornar dengoso tinham ido pelo ralo. A vida é dura, meu filho. Se você escapar, tudo bem. Se não, tudo bem também. 


Deve ser por isso que sou duro na queda: lutei com morcegões, ratos gigantes, e nem podia abrir os olhos que lá vinham eles. Chorar não adiantava. A casa no escuro e todo mundo fora, só restou a alternativa de olhar para dentro de mim como forma de me manter escondido aguentando o suor frio escorrer.


Qual a influência da dor na personalidade daquela criança?, fiquei a indagar quando cheguei da visita. É meu sobrinho de três anos de idade, e agora, no seu currículo, conta uma dose extra de sofrimento. Estava rodeado de mimos, com a televisão ligada nos desenhos, numa cama larga com a mãe segurando em sua mãozinha, mesmo assim o desconforto era visível em seu olhar. Ô diferença!, pensei dando graças a Deus por não ter sido vítima de apendicite. Ainda bem que não estrangulou, disse-me outra pessoa envolvida na conversa receptiva.


Cadê o marido?, perguntaram à tia que chegava também para a visita. Foi assistir ao jogo. Enquanto alguns derramam lágrimas, outros se divertem, pensei e comprovei ao encontrar a irmã do menino brincando vôlei na quadra do condomínio. 


Dirigi-me a mais uma. A pessoa se recuperando de câncer estava jantando e nem se lembra que me deixou trancado quando eu estava com febre beirando os quarenta graus. Dei boa noite e fui para a rede responder a um poeta que estava justificando o uso de história com "E" em seu cordel. Aprendi direitinho quando uma história é estória, saindo satisfeito para casa. Nem quis jantar no apartamento da paciente, apesar do oferecimento. 


Jantei em casa mesmo “rodeado de pagode” vindo do food truck de frente, e fui dormir. Ainda tentei assistir a um filme, mas o sono foi mais forte do que o roteiro. De madrugada, acordei com uns gritos: segura, segura, ele vai cair! Era a turma da cobertura em mais uma festinha para jovens. Alguém queria pular do vigésimo primeiro andar, mas parece que não deixaram. Virei-me para o outro lado vendo, por baixo do sono, a esposa na janela só esperando o suicida passar voando para registrá-lo no celular.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 12.03.2023 - 09h48min.



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