ISSO A HISTÓRIA NÃO CONTA
Batidas fortes despertaram-me do sono "madrugadeiro" naquela manhã da idade média alemã. "Meti os pés pelas mãos" atropelando o penico mal posicionado no corredor. Naquele cantar do galo, já era para o escravo ter recolhido o material depositado pelas minhas três irmãs solteiras.
Olhei pelo buraco da janela e vi que era Gutenberg. Apressadamente abri a porta e permiti-lhe o conforto de um tamborete. Você tem que se apressar, disse-me acariciando aquela barba suja que dava nojo até em quem estivesse a cem metros de distância. As da corte ficaram satisfeitíssimas em ler palavras impressas pela minha máquina. Só falta você me entregar mais manuscritos. Vamos, cuide!
Naquele instante, uma das minhas irmãs veio andando com uma lamparina na mão perguntando quem havia chutado o seu depósito de urina. Isso não é hora para brigas no varejo, respondi-lhe fazendo um gesto para ir se vestir. Ainda bem que Johannes Gutenberg estava sem os óculos e nem conseguiu enxergar a bunda branca fugindo naquela escuridão.
Tome um cafezinho, sugeri enquanto ia escrevendo. É bom produzir algo inovador e rápido, pois os herdeiros do meu ex-sócio estão querendo tomar a tipografia dizendo que devo muito dinheiro ao investidor falecido.
Comecei escrevendo sobre as batidas ouvidas naquela madrugada. Tome mais uma xícara enquanto rabisco as duas páginas que você quer. Posso ir deitar-me com suas irmãs? Você gostou, hein!? Da última vez quase não sai e esqueceu de passar os honorários. Hoje elas não podem recebê-lo porque ainda estão na farra com um importante cliente. Coloque elas na trama que está escrevendo, já que as palacianas adoram, principalmente as princesas que são doidas para fazerem o que elas fazem, mas não têm coragem. Eu queria que fossem contratadas pelo departamento de lazer do castelo, só assim eu deixaria essa profissão de alcoviteiro que minha mãe transferiu como herança. Eu posso tomar conta delas, o que você acha? Elas dão muito trabalho, e além do mais só querem comer do bom e do melhor.
O inventor tomou mais um pouco de leite misturado com broa preta. Sentou-se olhando, sem muito interesse, meus pergaminhos espalhados pela mesa. Levantou-se, foi até o jirau e cortou um pedaço de carne seca comendo-a crua. Dava a impressão que vinha visitar-me só para tirar a barriga da miséria. Ouvi falar que nem dormir direito ele dorme mexendo com suas invenções.
Quem está aí? perguntou o amante segurando a arma e a celoura. Calma amigo, estou a conversar com meu editor Johannes Gutenberg, o grande inventor da tipografia. Ah, tá! Tudo bem, respondeu Fust. O rico joalheiro sempre caía nos braços das três. Amarrou as calças, com cordinhas de agave, e veio participar da mesa farta.
É um prazer conhecê-lo, disse apertando a mão de Gutenberg. Tenho interesse em investir no seu invento por acreditar que será a maior revolução quanto à divulgação de ideias. Sim, claro! Estou trabalhando para editar a Bíblia utilizando quarenta e duas linhas em cada página, isso com o apoio dos religiosos que já encomendaram várias edições. É, já ouvi falar, inclusive aproveito o momento para lhe adiantar o valor de cinco exemplares.
Refugiei-me na outra sala procurando sossego. De lá ouvi Gutenberg, o folgado, gritar quase como uma ordem: acabou-se o leite! Colocou a quenga na mesa abrindo a janela para ver o “clareamento” do dia. Fust tirou o relógio da algibeira e consultou a hora. Minha esposa acredita que estou no clube, por isso tenho que ir.
Chamei minha irmã mais velha para ordenhar uma das cabras que estava dormindo perto do fogão. Seu amante nem a repreendeu por ela chegar sem lhe dar atenção. Estava entretido fechando o negócio e a braguilha, e ela lá, descabelada apertando tetas sem se importar com a blusa mostrando as suas.
Ao lado da mesa, o cachorro sofreu uma pancada desferida por Fust para deixar de ficar olhando-o. A cabra deu um berro impaciente no momento em que o leite era, sofregamente, tomado por Gutenberg.
Quando Fust saiu para mentir em casa, Gutenberg se aproximou dela e lhe propôs novas brincadeiras. Não, você é xexeiro, respondeu-lhe e saiu em direção ao quarto. Gostei quando ele saiu atrás, pelo menos daria tempo para que eu terminasse o texto.
Duas horas depois, Gutenberg, ao sair do quarto, recebeu a minha produção literária dizendo que o pagamento estava em cima da laje de dormir. Confiei sem ter como fazê-lo esperar pela conferência, e quando fui lá buscar, minhas queridas irmãs disseram que ele só havia deixado o correspondente aos favores amorosos.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 28.01.2023 - 19h53min
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