OS BENEFÍCIOS DA MENTIRA
Há quatro meses que a esposa morrera de câncer e os filhos, para não ter que repetir "mãe morreu" várias vezes ao dia, comunicaram-lhe que ela estava hospitalizada. A verdade foi dita algumas vezes, mas o choro foi tão violento que assim optaram em refazer a verdadeira informação.
A partir daí, não houve mais choro pensando que a esposa tinha saído ontem para o hospital e isso o faz continuar vivendo em paz. Quando a filha chega da capital, ele logo pergunta: como está Darcília? Daqui para a próxima semana o médico vai dar alta. Está bom! pior é morrer, responde ele se conformando.
O sepultamento fora realizado, mas ele, devido ao mal de Alzheimer, esquecera. A memória que permanece é a de vê-la sendo medicada no quarto e depois transferida para o hospital.
Algumas pessoas são a favor da verdade, poucos concordam em omiti-la, o fato é que mantê-la viva tornou-se prioridade, pois ele diz que não pode morrer para que ela não fique abandonada, motivação que o faz ir sobrevivendo com mais de noventa anos.
Ele gosta do sítio e fica na cadeira de balanço imaginando quando comprou aquele pedaço de terra. Comprei e paguei por cento e cinquenta. Eu comprava e vendia gado, do mesmo jeito com o algodão antes do bicudo. Os meninos foram nascendo e me ajudando. Darcília disse que só se casaria comigo se não precisasse ir para o roçado limpar mato. Aceitei! Teve uma vez que perguntei se ela “podia” ir, mas ela foi logo me dizendo que era melhor que uma cascavel lhe picasse. Não, não precisa. Gosto de ouvir o chocalho do gado.
Pai, o senhor quer vender esse sítio? Não vendo por dinheiro nenhum e nem troco pela cidade inteira. Aquele homem, quem é? Veio comprar o estrume do curral. Ontem veio um comprador, disse o morador, mas ficou conversando e foi embora. Amanhã eu venho! Não, acho que hoje mesmo trago o caminhão, disse o comprador. Não precisa se preocupar! Nesse sítio palavra dada é palavra cumprida. Pode vir amanhã mesmo que o estrume é seu. Nunca fiz negócio para me quebrar. Ô velho macho! Mas tem que ser assim mesmo. Gosto de trabalhar aqui por isso.
Eu quase não enxergo esse gado aí. Hoje está ventilado. O que é que tem para o almoço? Tem bode, guiné, feijão, arroz... umas verduras. Está bom! Catuque aí no celular e pergunte que dia Braciala vem. Ela já está vindo, pai. Eu sempre quis ficar velho para saber como era, mas vejo que não é bom. A pessoa quer fazer as coisas e não pode. Quem disser que é bom está mentindo. O médico disse que eu não podia nem pegar três quilos. Um dia desses eu tentei e quase morri com esse negócio no meu peito batendo forte.
Pai, o senhor está gostando desse novo marcapasso? Agora melhorou. Eu só vivia com sono, agora estou mais ativo. É que o outro já estava no prazo de ser trocado. É tanta coisa e até já disseram que eu não podia usar relógio por causa dessa máquina aqui. Cadê o burro? Já deram água ao coitado? Já, pai, Metrarco é o melhor trabalhador que esse sítio já teve. É mesmo. O mago velho aqui não corre de serviço não, só corro de grito. Se gritar eu deixo tudo e vou embora. A neta veio me perguntar se eu estava namorando sua mãe. De jeito nenhum, meu relacionamento é profissional. Aqui tem um gado meu, mas se me aperrearem eu vendo tudo e vou embora. Eu sei mais ou menos quem arrombou a porta para roubar.
Esse aí é muito trabalhador mesmo. No meu tempo eu ia para a serra pegar barbatão. Quase morri da carreira que dei num. O bicho era ligeiro e não vi a forquilha da Jurema.
Éramos “doidas” pela irmã que pai teve com outra mulher, mas a bichinha não resistiu. Acho que morreu por falta de leite da mãe. Naquele tempo morria muito menino de fome. Teve uma mulher que veio deixar sua recém-nascida para mãe criar. Ela disse, já tenho oito. Jogue no rio. Mãe sempre foi vexada. Está no hospital, né pai? É... será que vai ficar boa? Vai, está bem animada. Olhe aqui o vídeo dela cantando. A filha que chegou da capital, mostra-lhe um vídeo que foi gravado quando os doutores da alegria passaram no quarto poucos dias antes da sua morte. Ele a observa e diz: diga a ela que venha para casa que eu já estou com saudade!
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 23.09.2022 — 16:14
Todo dia Heraldo dá uma "catucada" na imaginação e tira de onde ainda não tem. Nosso cérebro é especializado em mentiras, algumas necessárias. Parabéns. - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirGrato, Gilberto!
ResponderExcluir