segunda-feira, 19 de setembro de 2022

MASTIGANDO SEM PRESSA - Heraldo Lins

 


MASTIGANDO SEM PRESSA


Sair deste mundo para a realidade nem sempre é uma boa opção. Mesmo que exista uma ponte construída nas referências, é praxe segurar ideias para futuras reciclagens. 

Todos os dias, chega um cardápio oferecendo-se para ser escolhido. No restaurante da página, já saboreei uma paçoca de crônica, feijoada de romance e sobremesa de conto. A potência energética dada por eles é variada e muito eficaz, sendo que o poema é um lanche tomado depois da ceia, enquanto o ensaio é um caldeirão para mais de um mês de consumo.

Dia desses, durante o almoço, provei um aperitivo poético que me deixou meio embriagado. O gosto era de "quero entender", porém não pude ingeri-lo, à exaustão, com medo de meter os pés nas pedras. Ele foi para o rol da experiência, apesar disso não sei se o compreendi com todos os possíveis significados, só posso dizer que me deixou pensativo até hoje. Tenho certeza que voltarei a ele, quando passar a lembrança do tropeção.  

Viajo praticamente cinquenta páginas, ou mais, atrás de novos sabores, e gosto muito de deixar sucos de palavras para outros terem acesso aos respingos da minha experiência. A cada dia, novos paladares são propostos com o objetivo de expor algo inédito que irá alimentar quem sente a mesma fome. Com tanta chuva de conteúdos por aí sendo oferecido de graça, fica difícil a escolha, ainda assim o que importa é o discernimento ficar apto a escolher quais novas formas de cozinhar palavras podem ser praticadas.  

Chegar ao final é tão complicado quanto começar. Escolher os ingredientes que irão compor o alimento da alma passa a ser estafante, no entanto prazeroso. Para cozinhar uma historinha, qualquer que seja ela, às vezes me custa o dia inteiro pelo fato de que não é fácil misturar gerúndios com particípios, inserir uns "aindas", outros "assins" dando forma ao cozido num processo de experimentação que, muitas vezes, de tanto botar, esquentar, tirar, esfriar, resta apenas a alternativa de jogar fora. O cozinheiro de palavras é um tradutor dele mesmo e precisa estar atento às redundâncias que anunciam a hora de desligar o fogo.

No caminho, tudo pode acontecer, desde uma palavra mal dita ou ao contrário, entretanto a chama deve estar acesa no ponto da desconfiança. O bom dessa refeição é que ela pode ser degustada por milhões e nunca se acaba. Às vezes precisa somente existir para, a qualquer hora, ser usada na sobrevivência de quem gosta de comer ideias. Faz tempo que a única preocupação que tenho é cozinhar na panela do bom-senso e da satisfação.   

É difícil fugir para dentro de si mesmo, contudo essa viagem evidencia um forte prazer ao ser liberada para conhecimento público. Na busca pelo prato perfeito, quase inalcançável, deve-se entrar no silêncio para que o barulho venha à tona. Sofrendo ou gozando, dependendo do que se escolhe para cozinhar, essa é a realidade de quem acredita na motivação como sendo o melhor tempero.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.09.2022 – 17:27



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