sexta-feira, 16 de setembro de 2022

DEVANEIOS EM OUTRO NÍVEL - Heraldo Lins




 DEVANEIOS EM OUTRO NÍVEL


Fui dormir dentro do tempo. Eu sabia que estava na data de ontem porque o sono atrasado clamava para ser recuperado. Olhei para a madrugada que, por motivo de sintonia, ficava brigando com a noite querendo tomar o seu lugar. O barulho daquela briga quase me expulsou do leito.

Lembrava-me ter sido hospitalizado à época que nem se falava em viajar por dentro do espírito. O efeito daquela situação estava potencializando o meu cérebro, afinal, durante esse tempo todo só me entretive observando o sangue sendo reciclado. 

O fato de estar vegetando há décadas, fez-me produzir pensamentos onde tudo permanecia na cor vermelha. A necessidade de adentrar em outra realidade foi sendo planejada aos poucos. 

Minha mente apresentava indícios de que o corpo estava destinando cada gota de sangue para lugares que eu ignorava existirem. Era como se fosse uma floresta sendo vasculhada onde algumas árvores serviam de antena para captar os raios do futuro. 

Um dos neurônios avisava o que estava para acontecer, e os demais produziam imagens baseadas no comando recebido. Senti uma refrigeração no cérebro ao perceber que em certo momento todos foram liberados dos traumas. 

Muita força e discernimento chegava dizendo para me levantar. Por não acreditar que fosse o instinto suicida falando, puxei as instalações do cateter e, nesse momento, recebi um choque avisando-me que a gerência havia sido transferida para um ambiente totalmente isento da minha vontade. 

Meu livre-arbítrio estava desabilitado, disse-me um vulto. A partir daí foi só soluções. Acabara de sair do meu próprio domínio passando a obedecer ao que vinha sendo dito pelos pequenos seres pensantes existentes no meu cérebro. 

Busquei me adaptar ao novo comando avisando a mim mesmo que chegara a vez de ficar longe das dúvidas e bloqueios. Sozinho, levantei-me e fui seduzido por um brilho no chão indicando qual caminho tomar. Na hora de levantar os pés, cada perna recebia uma ordem. Esqueci-me das dores de cabeça e fiquei degustando o prazer de estar voando. 

Meu corpo servia de ponte entre o agora e o depois. O efeito daquele transe migrava para todas as células reconhecidas por mim. Fui andando e finalmente entrei na rua larga da saída do prédio em busca de uma casa que nem existia mais. 

Procurei manter-me respirando sem me preocupar que a tropa estava chegando. Soldados de branco aproximaram-se, mas não me tocaram. De mãos dadas todos me acompanhavam como se eu fosse o cabeça de uma revolução transparente. Fomos caminhando e invadindo lugares e mentes de quem ficava exposto ao meu campo visual. Tentei sustentar as ideias na origem, mas elas foram saindo junto com as lembranças, até então, guardadas não se sabe onde.  

Estilhaços dos tabus voavam deixando-me livre da vergonha. Procurei algum referencial no porão do inconsciente, todavia o barulho ia me dizendo que ele estava sendo reciclado para servir na função criativa. Outra indefinição apareceu para me guiar. 

Chegou de forma tímida e depois foi atendendo, com desenvoltura, minhas vontades enquanto uma canção passou a ser ouvida mascarando alguns gritos ouvidos ao longe. Aconteceu um clarão que limpou as consciências dos mal-amados e criminosos que seguiam a procissão. 

A fumaça veio sem que eu pudesse ver onde pisava. Um portal à frente se abriu e todos os que me acompanhavam tomaram à frente e foram sumindo pouco a pouco enquanto eu perdia o controle das pernas. Não dependia de mim, adentrar aquele recinto. Eu estava nas mãos dos meus pés que, por sua vez, obedeciam à outra gestão. Fiquei esperando para ver o que acontecia. O portal continuava aberto e livre de fumaça.  

Naquele momento, alguém veio e disse algo incompreensível. Diante da minha total ignorância, os neurônios conseguiram se reprogramarem e, juntando forças, deixaram-se levar pelo sono. Mesmo eu não conseguindo permanecer deliberando cotas de vontades, fiquei observando para onde minhas ideias iam e aproveitei para assistir, sem poder interferir, o espetáculo da minha própria existência.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.09.2022 ─ 11:11



2 comentários:

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