REFLEXÕES DE UMA PESSIMISTA
O lençol fino amarelo-claro cobre o corpo roncador do marido ao seu lado, enquanto o sol despertador quer participar da festa do amanhecer na suíte matrimonial, porém, a claridade é impedida pelo cortinado recém-instalado. O olhar para o futuro a impede de levantar-se da cama por saber que lá fora não há nada de agradável para se fazer. A rotina chega com "más-vindas" mostrando a pia abarrotada de louça suja e, na tábua de passar, roupas amassadas esperam para serem torturadas pelo ferro quente.
Se pudesse, fabricaria mais sono para sua mente sofredora permanecer consumindo-o, incansavelmente, até aparecer algo que justificasse o acordar. Não tem esse poder, a não ser que apele para a química comprada ontem na farmácia. Deixa estar! Já anda muito cansada disso tudo.
Seu pensamento permanece como se fosse um emaranhado de teias impedindo-a de encarar a vida como ela é. Acha bonito as pessoas falarem que todos temos dúvidas existenciais, mas acredita que ninguém tem mais do que ela. Aqueles que falam isso só sabem por ouvi dizer. Vão cedo para a igreja colocá-las mundo afora através da socialização religiosa, outros dirigem pela estrada madrugada adentro, contudo, ela decidiu encará-las na cama.
Se é preciso entender essas angústias, prefere fazer isso enquanto ainda os de casa permanecem dormindo. Só que todos os dias o seu mal-estar surge disfarçado de pensamentos que acreditava ter esquecido.
Quando pensa na paz interior, o aplicativo da operadora envia uma mensagem dizendo que a conta telefônica não foi paga, significando que está prestes a perder o contato com os demais membros dessa intrincada socialização virtual. Acessa-a, costumeiramente, mendigando escutar a receita da felicidade. Faça assim ou de outro jeito, e serás feliz, dizem os hipócritas motivadores de algo que nem mesmo eles acreditam. Exemplificam que seus avós diziam isso e que, sem dúvida, funciona. Nem sabem, ou fingem não saber, que os próprios autores dos conselhos estavam era tentando evitar serem mortos na boca dos tigres, portanto, sem nenhuma comprovação científica o que se é compartilhado.
O roncador reclama do calor e se levanta com um pijama ridículo acompanhando-o por fora das pernas. Um estrondo no sanitário a faz levantar-se apressada tapando o nariz. A respiração presa no quarto é liberada na sala distante da prova de que somos intragáveis na essência. O odor de podre produzido pelo corpo daquele que há pouco se levantou, é o mesmo que ela e seus pequenos "podrinhos" dorminhocos na frauda, produzem.
A que ponto chegou! Ter consciência de que não passa de uma fábrica de dejetos, isso é o que lhe entristece ainda mais. Lembra-se das pessoas vestidas de brilho fugindo dessa realidade através de um sorriso encomendado, na TV. Agora é que entendeu a palavra sucesso: diz respeito aos que tentam se esconder com mais eficiência por atrás do que fazem.
Quanta ingenuidade achar que será feliz enquanto carregar essa formação orgânica. Os cientistas deveriam buscar a sobrevivência sem que o humano precise do sistema digestório, respiratório... isso só atrapalha a vida. Bastam poucas semanas sem alimentação para que a humanidade seja extinta.
Poderia terminar sua fala agora, pois acha que já disse o que tinha para dizer, mas as panelas permanecem sujas. Se sair desse mundo de reclamações terá algo pior para fazer. Será cobrada no seu trabalho, na sua vestimenta... passamos a vida inteira cobrando uns dos outros. O filho cobra alimentos, o pai um bom comportamento, o chefe, metas... se viver é isso, viva a morte, diz ela enquanto lava a louça.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 27.06.2022 — 07:44
Sempre bom, Heraldo, mas cada vez melhor. - Gilberto Cardoso dos Santos
ResponderExcluirEita, obrigado Gilberto pelo incentivo. Heraldo Lins
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