quinta-feira, 16 de junho de 2022

GENIALIDADE APRISIONADA - Heraldo Lins

 


GENIALIDADE APRISIONADA


O menino estava no hospital e ficou curioso em observar a plataforma, para transporte de idosos, subir os degraus. Foi chamar o irmão maior para assistir como funcionava a novidade. 

Na rua, passava um alguém montado nas costas de um robô com duas rodas. É uma motocicleta moderna, disse o irmão maior. Furtou aquela imagem admirando-se. É crime registrar cenas sem a permissão do observado, disse-lhe o guarda atento em cobrar pedágio dos que prestavam atenção. Aqui só se pode fazer o que está anotado nos códigos de conduta, e ficar olhando é proibido. 

Passou outra pessoa pendurada pelo pescoço em cima de um caminhão guindaste. Essa pode ser olhada. Ninguém disse, mas ele imaginou. A loja de cordas estava fazendo propaganda demonstrando que seus produtos são os de melhor qualidade. 

Um veículo em forma de mama transportava o leite entregue nos mercados, e outro, cheio de preservativos, buzinava com aparência do conteúdo, deixando as pessoas mais sorridentes. 

O trânsito todo personalizado fez o garoto ficar admirado. O caminhão de calcinhas que havia exagerado no volume dos quadris, também, passou buzinando. Só não compra quem não entende o que é consumismo.

No seu estágio interiorano, ele fica com um sonho de vir morar num lugar onde tudo tem uma razão de ser. Os sorrisos são planejados, os apertos de mãos, também, e quem está na porta nem é o dono da casa, mas o porteiro que ganha para fechá-la. O menino quer ser porteiro. Admirou-se com a farda preta e chapéu enfeitado. Que coisa! disse ele em seu interior invadido pela capital.

Tudo é novidade. Sua vontade de ir pescar, caçar e atirar pedra nas árvores foi substituída pela muvuca industrializada. Sua mãe o chama para o exame de eletroencefalograma. Ele vai. O menino precisa ser medicado, diz a mãe ao médico. Sonha demais. Pensa em ser um pouco de tudo ao mesmo tempo. O médico o examina, bate no joelho dele, senta-se e prescreve tarja preta. O que ele tem doutor? Excesso de criatividade! Ele precisa se adequar ao sistema das mediocridades. Nasceu curioso e isso pode lhe matar. É muito grave? Desde que ele permaneça em silêncio, não! O problema existe se ele começar a questionar porque os adultos ensinam um caminho e seguem por outro, disse o médico.

O menino sai do hospital triste. Agora não pode mais sonhar nem perguntar. Tem que fazer o que os outros lhe dizem. Anda cabisbaixo e pensa. Sua mãe o segura pela mão tentando baixá-lo ao solo. Ele tem essa característica: não só sonha, mas torna realidade o que lhe vem à cabeça.

Ao chegar em casa já nem consegue mais sonhar. Tomou, durante a viagem, o comprimido. Os dias passam e ele consegue ficar mais triste ainda. Seu sonho agora é poder sonhar, coisa tão banal que fazia “nas antigas”.

Nas manhãs seguintes as paisagens continuavam cinza. As árvores não mais falavam com ele e os pássaros tornaram-se apenas aves. Foi falar com seu cão e ele apenas balançava o rabo e babava. Que estranho, disse ele. Tentou comunicar-se, mas na pia a água era apenas líquido. As histórias que os átomos de hidrogênio e oxigênio contavam, não estavam mais sendo por ele captadas. De onde vinham e por qual processo haviam passado, isso tudo eles contavam. O menino “viajava na imaginação” com essas moléculas de H₂O. Que pena! Tiraram-lhe a capacidade de ser educado pela própria natureza.

Mandaram-no estudar nos livros dos doutores de anel no dedo. O que valia era o que estava sendo dito pelos PhD. Nada poderia mais ser aprendido por conta própria. Os traficantes de conhecimento vendiam, através das livrarias e canais de vídeos, especializações para isso e aquilo outro. 

O menino tinha que se sujeitar ao cartel das universidades, academias e escolas. Seu conhecimento teria que ser “forrado” por um diploma, e sem amassar cadeira em frente aos doutores, seu conhecimento não teria valor. 

Para voltar ao “seu normal”, conseguiu colocar o comprimido debaixo da língua e cuspir escondido. Assim que teve uma melhora, aproveitou para cair fora dos trilhos que o médico receitou. Assim, pode enxergar as pessoas como robôs guiados pelas tarjas pretas. Um verdadeiro exército de ovelhas correndo para onde havia pasto verde, e ele, para se salvar, não contou mais seus sonhos.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 15.06.2022 — 23:56



3 comentários:

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