sábado, 18 de junho de 2022

CRIAÇÃO TRAPACEIRA - Heraldo Lins

 


CRIAÇÃO TRAPACEIRA

 

É preciso colocar, pelo menos, um personagem em cena, e hoje ele encontra-se além da cerca invisível que o protege. Nem consegui vê-lo, de tão escondido que está, por isso, abri uma concorrência pública para contratação de alguns. 

Apareceu uma mulher que tudo que ela contava era com sonoplastia. Se narrava uma caminhada, ela acrescentava o toc toc dos sapatos batendo no piso. Ao lavar as mãos, vários chuás eram escutados. Não tive paciência em ouvi-la por mais de três minutos, por isso, pedi para ela aguardar a equipe contratante. 

O próximo candidato chegou com uma inflamação no olho, e durante a consulta, a sala da médica foi invadida pelos funcionários que ficaram “tirando onda” do popular amigo. Ele disse que se a médica não os expulsassem, quebraria tudo na sala. O senhor tenha calma, disse ela. O seu caso é grave e vou ter que encaminhar o senhor para a capital do Estado. É a senhora mandando, e eu me jogando debaixo de uma carreta. Aqui não tem remédio não!? 

Ele é muito popular na cidade por ser um "bruto engraçado". Fizeram uma “cotinha” para comprar roupas, toalha e sabonete, e finalmente, ele foi para o outro hospital. No caminho, perguntaram-lhe como estava, e ele: “tô liquidado!Se a pessoa não tiver dinheiro eles matam. Meu pai ainda demorou um pouquinho porque o velho oferecia logo uma vaca parida a quem entrasse vestido de branco na enfermaria. Eu não tenho nem uma bezerra, vou morrer é na calçada.”

O outro personagem foi detectado pela filha que toma conta dele. Ela sentiu um mau-cheiro dentro de casa e perguntou se ele havia ido ao banheiro. Eu não! Ela entrou lá e viu o produto da ação de número dois no chão coberto com uma toalha. Mas pai, olhe o que o senhor fez! Ele havia, também, sujado o trinco da porta e sapateado a casa toda. Eu mesmo não! Disse o velho com mal de Alzheimer. E quem foi? Duas mulheres que entraram aqui. Você não viu não? A filha apenas balançou a cabeça. O velho se abaixou, encheu a mão e jogou o produto na cara da filha.

Os três personagens principais previstos para hoje ficaram aguardando serem contratados pelo autor da crônica. O tempo passando e eles conversando. A mulher prolixa foi a primeira a ser chamada para contar a história do homem do olho inchado. Pois bem, disse ela: o homem gordo chegou “freiando” seu carro quase em cima da gente skrr... fechou a porta... praaaaa.... entrou no hospital com suas sandálias... plac plac plac... quero ser atendido, disse ele: chup chup chup... a equipe não entendeu o que era o chup chup. Ela disse ser o homem mascando chiclete. Tudo bem, pode continuar. A recepcionista mandou ele aguardar e pum. Os avaliadores se olharam e perguntaram: o pum é o quê? É pum mesmo. A recepcionista estava com diarreia! 

Tudo bem, pode parar, disse a produção. Hoje não tem como o autor colocá-los no texto. Por quê...? perguntou o velho. É que ele está sem inspiração para dar prosseguimento a suas histórias. A filha do velho se alterou. Eu tive que lavar a toalha, limpar a casa e o rosto, dar banho nele novamente em troca de nada? Mais de duas horas trabalhando para chegar aqui e receber um não, resmungou ela inconformada. 

Pior fui eu, disse o homem do olho inchado. Quase morri, além de gastar gasolina daqui para a capital. Agora vou ter que esperar esse olho desinchar. Nem sei se vai! Pelo que disseram sobre mim, é câncer. Lasquei-me! Como é triste a vida de um personagem desempregado. 

A primeira candidata saiu da sala sem dizer nada, mas seus pensamentos ficaram registrados: #” Grrrrrrrr $§%#@!¨&(+_.

O autor olha para o esconderijo dos personagens e os vê rindo da cara dele. Invadiram o espaço da crônica fingindo serem candidatos. É nisso que dá a pessoa perder o controle da própria produção. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 17.06.2022 — 15:20



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