quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

NOS TRILHOS - Heraldo Lins

 



NOS TRILHOS


Procura, nos quatro cantos do mundo, um assunto que sirva para gastar sua vida. Já está farto de gastá-la com o trabalho, diversão etc. Mas antes precisa tirar os cabelos do nariz, que só se igualam, em termos estéticos, aos cabelos nas orelhas que, bem lembrado, também, estão crescidos.

Nem queria falar nisso, mas hoje seu dia amanheceu trazendo o barulho do sol, até então, nem se dava conta que o sol faz barulho brilhando. Deve ter sido a influência do veículo sem escape que passou ontem pipocando na avenida, e isso o desnorteou um pouco.

Acordou com alguém lhe chamando. Respondeu, esquecendo que mora sozinho. Está escutando vozes, e não é a primeira vez que isso acontece. Acredita que é o seu animal de estimação cobrando alimentação. O gato fala, só que na linguagem do pensamento. Seu desafio é aprender a se conectar sem entrar em transe. Não quer aprender os idiomas estrangeiros, esses ele já conhece em seus sentimentos. Sua preocupação é saber se o felino, também, é vaidoso, orgulhoso, bom ou mau-caráter. 

Isso tudo acontecendo antes de se levantar. Ao olhar em volta está rodeado de visitas. Vieram enquanto ele, montado em um cavalo com gnomos sendo seus auxiliares, desvendava um crime. O veículo do chefe era azul, mas não passou no areal e o cavalo empancou fazendo-o acordar.

As visitas, sorrateiramente, avançaram janela adentro na calada da noite, e permanecem esperando uma ação de boas-vindas. Ele prefere expulsá-las com vassouradas e pano molhado. Não aceita visitas de poeira.

O braço dói avisando-lhe que precisa começar a maratona dos remédios. Dois antes do café, três depois, quatro, uma hora após o banho, e um especial, depois do jantar, para fazer feliz a diarista do sexo, paga mensalmente.

Mas o dia está apenas começando. Tanta gente sem tempo e ele com fartura. Fica se perguntando por que quando se é jovem não se tem tempo para viver os prazeres. Gasta-se limpando coco dos filhos, levando-os à escola, acordando de madrugada e correndo para o hospital, para depois ficar apenas com as lembranças. A finada queria porque queria aquele aperreio, e ele, manipulado pelo que ela guardava entre as pernas, aceitou de bom grado.

O estômago grita por atenção, fazendo-o abrir o armário gelado para ver o que a cozinheira deixou preparado. Seus maiores prazeres estão guardados ali. Antigamente sentia satisfação em conhecer pessoas, entretanto, depois que aprendeu o idioma dos sentimentos, sua atenção se voltou para o invariável. Descobriu que só se é bom quando faz vontades, quando contraria, torna-se mau.

Observa a vida passando. Não quer pegar essa locomotiva, pois sabe que ela vai estacionar com ele dentro. Tranca-se dentro de casa e diz ao maquinista que não está vivendo, apenas vegetando. A polícia é avisada que alguém está querendo enganar o tempo, insinuando que a cada duas voltas da terra, apenas uma deve ser contabilizada.

Mesmo sem gosto pela locomotiva, é empurrado para dentro dela. Sua angústia vai se tornando maior a cada curva sem avistar a estação final. Dentro do trem passa alguém chorando porque o filho avistou a estação primeiro. Um outro, com uma faca, faz seu inimigo ver. Ninguém dentro da locomotiva está totalmente cego para ver o final, em paz.

Há um respeito submisso por saberem que qualquer um pode apressar essa visão no outro. Na parte traseira da locomotiva, há um vagão guardando os que empurraram muitos em direção à estação. Esses não têm medo de ver a estação nem fazer alguém ver antes do programado pelo maquinista.

A viagem prossegue cada um vendo o que quer ver, e ele não é diferente, só que decide, para o seu próprio conforto, ver a estação a um fio de cabelo.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 08.02.2022  ─ 11:04



Um comentário:

  1. Um ótimo texto, digno de ocupar o primeiro lugar por tanto tempo. - - Gilberto Cardoso dos Santos

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