FALSIDADE BENÉFICA
Decidi ser irônico. Meu sofrimento em escutar falastrões se envaidecendo fez-me optar por esse caminho.
Antigamente eu ficava irado quando escutava alguém se engrandecendo ou repetindo assuntos batidos. Levantava-me e saía. Esse meu comportamento deixava-me com uma reputação de curto e grosso, de bruto, de ignorante, tipo seu Lunga. As pessoas não percebiam que já haviam me contado determinadas experiências, e quando eu dizia que já sabia, elas se chateavam.
Atualmente, histórias repetidas eu as trato como se fosse a primeira vez que as ouço. Fico fingindo surpresa para que o diálogo estire ainda mais. Um parente disse-me, pela trigésima vez, que o seu filho havia vendido o apartamento. Perguntei-lhe ─ já sabedor de tudo ─ foi mesmo? Vendeu a quem? Está morando onde? ─ Perguntas feitas com o único objetivo de que ele se sentisse bem. Continuou falando, interminavelmente, do seu netinho. Eu dizia: esses meninos de hoje em dia são muito danados; inteligentes; sabidos; também, tem a quem puxe! Intervenções que em nada alteravam meu padrão de sobrevivência familiar, mas que deixava todos contentes. Parece que as pessoas adoram serem enganadas. Ele achava bom, e eu, por minha vez, fiz tudo isso com o propósito de não adoecer de raiva.
Optar em ser irônico, hipócrita e mentiroso, para quem não tem vocação, é um tremendo sacrifício, entretanto, traz um retorno imediato.
Comecei a ser convidado para jantares, aniversários, batizados... e em um desses, o anfitrião me falou dos presentes que havia dado e me mostrou os que tinha recebido. A cada apresentação, enfatizava o sonho que poucas pessoas podiam comprar. Eu o elogiava e, de acordo com sua aparência, percebia que havia conseguido encontrar a receita de me dar bem socialmente.
Dormi sossegado e, ao acordar, fui logo treinando a nova performance. Ensaiei em frente ao espelho a postura da boca, dos olhos, como deveria me trajar, gargalharia ou apenas sorriria? Essa dúvida me roubou três noites de sono. A forma de andar ensaiei à tarde. Nem depressa, nem devagar. A velocidade correta é de acordo com o tamanho das pernas. Se houver alguém por perto, deve-se adaptar-se ao ritmo desse alguém.
Também não se pode elogiar tudo. No caso de morte é bom dizer que era amicíssimo do morto. Jamais o defunto virá contestar a mentira, e passa-se a ser bem-visto entre os vivos.
Se a mulher tem um glúteo avantajado, não se deve salientar. É melhor dizer que gosta de pintar, e que os seus olhos é um modelo para o quadro que se quer produzir. Ela gosta que se fale do cabelo, do sorriso, do brilho dos olhos e da sua inteligência. Nunca das partes mais cobiçadas. Se ela anda mostrando uma "pata de camelo", nunca se deve baixar o olhar. Pode-se até apreciar, sorrateiramente, mas nunca que a deixe constrangida.
Falar em tom alto também não é recomendado. Em contrapartida, a interjeição “hummm” deve ser sempre utilizada para tentar acalmar os ânimos, mas nunca se deve dizer "dois" quando for ela que pronunciar. O que importa é a atenção, e, de preferência, que o irônico lhe tome a bênção. Alguém pode lhe chamar de babão, mas o que é que tem?
Heraldo Lins Marinho Dantas
Santa Cruz/RN, 06.01.2022 ─ 09:46
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