A CONDUTORA DOS MORTOS
Iandara tinha apenas seis anos quando participou do seu primeiro velório. A falecida era a vizinha de oitenta anos que morava no final da rua. A menina foi acompanhando a mãe. Seguiu-a calada no cumprimentar dos parentes de dona Epifânia.
Notou o ambiente lacrimoso e os rostos desalentados dos íntimos e que alguém chorava tendo de ouvir expressões pouco consoladoras: “descansou!”, “viveu muito!”, “Deus a quis para ele”.
Alguns conversavam no alpendre ventilado, fugindo da quentura matutina, mas a sala onde o esquife repousava parecia estática. Quase nada se movia em volta da defunta.
A comprida caixa de madeira rodeada da mais singela renda guardava um corpo magro e pálido. Crisântemos brancos cobriam aquela que fora a professora mais querida de Santa Cruz. Alfabetizara ricos e pobres com o mesmo fervor, por isso figurava como uma séria candidata à santidade.
Iandara abriu a boca de espanto. Aquele corpo em muito se parecia com suas bonecas. Os cabelos ralos e ressequidos, o tom amarelado da pele, a inércia das mãos entrelaçadas...
Os minutos passavam e a mente infantil imaginava. Aquela também podia ser a visão da casca seca de uma fruta já inexistente; a casa antiga e vazia de um sítio distante; a concha oca de um caramujo. Não sentia que havia uma pessoa habitando o lugar que chamavam corpo e essa intuição precoce revelava ser Iandara uma criança especial.
- Vamos embora, filha, preciso cuidar do almoço.
A voz da mãe soprou para longe as conjecturas da menina. Obedeceu e voltou à casa para logo em seguida fugir e retornar ao funeral. Postou-se ao lado do caixão e lá permaneceu até que o filho mais velho da morta avisasse que o cortejo sairia.
Depois daquele dia, Iandara sonhou sete noites seguidas com sete mulheres vestidas de preto cantando em volta da sua cama, enquanto seguravam crisântemos. Ao final daquele ciclo uma delas cochichou um segredo ao seu ouvido.
O tempo passou e os sonhos cessaram. Outros velórios aconteceram nas proximidades da casa de Iandara, mas a mãe não permitiu que ela fosse, com medo de que voltasse a se impressionar. Não sabia que sua menina comparecia a todos os eventos fúnebres de que tinha notícia. Que chegava mesmo a procurá-los em andanças pela cidade. Dona Selma, ocupada com as costuras, nunca percebeu o estranho costume da filha.
Aos oito anos, Iandara já era uma visitante experiente de velórios. Vinha sempre ao final, postava-se diante do féretro e observava, como que hipnotizada, o defunto prestes a seguir para última morada. O limite da experiência era a porta do cemitério, que nunca adentrou.
Um dia a menina adoeceu. A febre alta a impediu de ir para a escola. No delírio ardente em que foi arrastada, sonhou com uma criança de estimados cinco anos. O menino vagava perdido por uma estrada de barro ressequida, ladeada por espinhos pontiagudos. Parecia cego e chorava aterrorizado.
Dona Selma rezava o terço, ajoelhada ao lado da cama, quando uma desconhecida apareceu à porta gritando: “Condutora! Condutora! Uma alma perdida apela à condutora!”.
A mãe estranhou e demorou a entender o chamado. Quando finalmente saiu, informou que era o lugar errado, que não havia nenhuma condutora ali. A mulher não se conformou: “a moça não é a mãe da condutora?”
- Eu? Minha senhora, não tenho filha motorista. Minha menina só tem oito anos. A mulher olhou para trás da costureira, abrindo um sorriso esperançoso. Iandara, meio escondida e pálida já se encostara à porta.
- Eu vou, mainha. Vou lá guiar o menino.
- Como é? Que história é essa?
- A senhora lembra daqueles sonhos que eu tive com as sete mulheres? Pois elas me ensinaram a chorar os mortos. Eu guio eles até a porta do céu.
Dona Selma era religiosa, um tanto quanto crédula, mas nem um pouco suscetível a apelos como aqueles. Sua filha estava doente e delirante. Ponto!
- Dara, volte para o quarto! E a senhora faça o favor de ir embora com essa doidice. Onde já se viu? Que história sem pé e sem cabeça!
- Mas a alma do menino está perdida.
- Que menino?
- O bichinho que foi encontrado morto lá no mato.
- Minha Santa Rita! E de onde veio essa criança?
- Ninguém sabe.
- Mainha, deixa eu ir. Deixa eu ajudar o menino a encontrar o céu.
Iandara mal se mantinha de pé, motivo que levou dona Selma a pegá-la no colo e a levá-la de volta à cama.
- Filha você não está bem. Precisa se deitar e se recuperar. Esse menino não precisa da sua ajuda. As crianças não têm pecado e as portas do céu se abrem para elas no instante em que morrem.
- Tu não entende, mainha... a porta do céu é no final de um caminho misterioso. Eu canto para os mortos irem na direção certa.
Até aquele momento a mulher estava relativamente calma. Mas a justificativa da filha fez gelar o seu coração. Lembrou-se da própria infância. Dos sonhos após a morte da avó e de cada tia. Ela também havia recebido o chamado para cantar o que os antigos chamavam de “incelências”, mas fugira dele, apavorada com tão soturna missão.
- Dara, se aquiete. Não vou te deixar sair nesse sol quente para chorar ou cantar por ninguém. Tenho juízo. Esse menino já está no céu uma hora dessa e preciso baixar essa febre. A menina insistiu, a estranha permaneceu por uma hora à porta, mas a dona da casa não cedeu.
Tardezinha, quando tudo pareceu se acalmar e o sol cansou de castigar a terra, uma figurinha magra e pálida de oito anos esgueirou-se para fora de casa tomando o rumo do cemitério. Pela primeira vez precisou entrar e soube exatamente onde estava o túmulo do menino.
Ao se aproximar ouviu um choro infantil que findava e recomeçava de instante em instante, revelando o sofrimento de quem não havia encontrado o caminho da morada eterna.
- Qual é o teu nome, meu bichinho?
- Josué.
- Se acalme que vou te ensinar onde fica o céu. Tua mãe está lá te esperando de braços abertos.
- E por que ela me deixou?
- Ela foi morta por teu pai naquele sítio onde vocês moravam. Ele foi embora te deixando sozinho. Com fome, você vagou pela caatinga durante três dias e três noites até que morreu à beira de uma cruz feita de galhos do inharé, a árvore sagrada do sertão. Tu não se lembra porque o sofrimento apaga a memória. Agora preste atenção e venha seguindo a minha voz.
Iandara começou a chorar e a cantar os seguintes versos, enquanto saía do cemitério a passos trôpegos:
Ó minha mãe, ó pobre mãe...
Estive perdido,
mas reencontrei a estrada.
Caminho agora
Na direção do reino de Deus.
O meu pai te matou,
O meu pai me abandonou.
Já sofri dor e decepção
Mas me apego à fé,
Na esperança da justiça divina.
Ó minha mãe, ó pobre mãe...
Estive perdido,
mas reencontrei a estrada.
Caminho agora
Na direção do reino de Deus.
O sertão me negou água
A caatinga me negou pão.
O meu corpo não aguentou
O sofrimento da solidão.
Ó minha mãe, ó pobre mãe...
Reencontrei a estrada.
Me espere agora
No portão do reino de Deus.
Iandara não pôde ver, mas intuiu que Josué seguiu pelo caminho certo e que ao final dele, encontrou-se com sua mãe.
Após cumprir a missão, a menina voltou para casa e desmaiou na porta diante do olhar espantado de dona Selma. Passou dias acamada e finalmente recuperou-se para a alegria de todos os que já a conheciam na cidade.
A costureira fez um vestido e um véu da cor do céu noturno. A menina, agora paramentada, continuou a chorar e a cantar nos velórios de Santa Cruz. Dizem que guiou muitos às alturas celestiais.
(Dedicado à querida Iandra que me contou uma história da infância e a todas as “choradeiras” nordestinas que, segundo a tradição, conduzem os mortos com seus cânticos tristes).
Ana Cláudia Trigueiro
Muito bom... conseguiu me emocionar...
ResponderExcluirParabéns!
Novamente dando uma olhada no conto, percebi que há uma letra de uma música. O ideal é colocar a partitura. O objetivo é que a pessoa possa solfejar ou tocar a melodia e encaixar a letra, assim ficará bem melhor. Só uma sugestão.
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