terça-feira, 20 de julho de 2021

AGUANDO A REALIDADE - Heraldo Lins

 


AGUANDO A REALIDADE

    

A chuva chegou e ficou. O homem testemunhava ventos trazendo respingos para dentro de casa. Na sua memória muitas haviam chegado e ido embora. Ele ali estático olhando goteiras entregando água enfileirada em pingos cadenciados. Seus braços cruzados anunciavam a hora do frio. Coincidentemente encontraram-se: homem, chuva e frio. Nenhum dos três queria fechar a porta. Apenas o homem e o frio estavam em silêncio. As mulheres cantavam no coral da chuva. Partilhavam alegrias fazendo barulho musical junto com bacias de bocas abertas. Era ali que os pingos se refugiavam do frio. Os outros corriam no terreiro. Não tinha como ficar indiferente à persistência da chuva. As mulheres cansadas foram se deitar sem dormir. Eram quatro ao todo. Ficaram quietas ouvindo a sinfonia da chuva. Trovões não deixaram o sono ficar.  


Enquanto ela não seguir para outras paragens, ninguém sossega, pensava o pai. Em sinal de respeito descruzou os braços. A chuva exigia mais atenção. Havia chegado para entregar o pedido feito em orações nas noites de ventos quentes. Agora tinha que aceitar a encomenda. Ele sentia a ligação do seu eu com a supremacia da natureza. Calado, observava seus trinta e oito anos sofridos ao sol. 


Como bom anfitrião recebia a convidada com os olhos molhando a face. Pensava entristecido o quanto foi ingênuo em acreditar que sua condição de carente iria mudar com a chuva. Essa era mais uma que passaria como tantas outras, só que desta vez suas desconfianças permaneceriam. Não havia mais vontade de multiplicar suas forças. Seus dilemas eram mais intensos do que a própria esperança. 


Uma das filhas veio ter com ele. Aconchegou-se em suas pernas vestindo um casaco doado. Os gestos se uniam no silêncio úmido da noite envelhecida. Pai e filha contemplavam riachos andando pelos caminhos. A cada relâmpago uma nova estrada d’água se formava. Ele abraçou sua caçulinha. No rosto colado sentiu o milagre de ter uma família sadia. As outras se aproximaram reivindicando o mesmo. 


A chuva deixou de existir por momentos. Os trovões silenciaram-se dando passagem ao brilho da afetividade. As femininas com o foco no olhar do centro. Ele, com elas abraçadas, tornou-se. Voltava para o presente. O contato com as mulheres que lhe queriam bem apagava lembranças ácidas. Seu mundo estava feliz. Não havia seca, fome nem doenças. Não havia medo nem dúvidas. Estava completo e se completando. A sensação de liberdade permaneceu por alguns eternos minutos. Durante essa eternidade ficou cansado para pensar. Sabia que estava chovendo, mas não se dava conta do que aquilo significava. Em seu transe iluminado as viu crescidas. Estavam todas bem, no bem bom. Avistou-se sorrindo sem cicatrizes na pele... um raio relampejado no alpendre o fez olhar para a chuva.    


               


                 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 02/07/2021 – 10:31


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