sexta-feira, 5 de março de 2021

NO MUNDO DA NORMALIDADE - Heraldo Lins

 


NO MUNDO DA NORMALIDADE


Cavei um buraco para fazer uma carvoeira. Colocar lenha dentro da vala com o sol quente nas costas não é muito agradável, mas fui obrigado por duas cédulas de dinheiro. Elas estavam com um sorriso zombeteiro enquanto eu imaginava o poder que elas têm para me obrigar a suar tanto num serviço massacrante. Antes do “solzão” aparecer já havia desmatado quinze metros de lenha. Quando terminei o serviço fui até o açougue e comprei carne e derivados. Em seguida visitei a farmácia comprando pomada para a picada de marimbondo que sofri durante o corte da lenha. Uma paradinha na loja de câmara de ar de bicicleta para que minha supermáquina voltasse a funcionar. O fruto do trabalho acabou-se quando conheci o ponto turístico que vende calcinhas. Minha esposa estava desprevenida. 


De posse desse material responsável pela minha eterna felicidade, fui transportado pelos meus dois veículos movidos a feijão, “sandaliamente” antipoluidores, até o meu palácio com teto “azincalado”.  Foi uma festa ver minha família toda seguindo as últimas tendências da moda da barriga negativa. Nenhum tiquinho de gordura eles têm. Seguem à risca as orientações do personal “fomeer”. Comer pouco para ter saúde é a tônica lá na minha mansão de infinitos metros quadrados, com vista para o aterro dos urubus e de o rio “esgotal”. Lá em casa todos seguem a tendência naturalista. Optamos por alimentos crus, evitamos, assim, fogão e micro-ondas. Ao abrir o saco da carne os pequenos avançaram em cima. Eles aproveitam cada momento para se exercitarem. Pegaram na ponta da linguiça e foram brincar de cabo de guerra. Eles levam tão a sério seus esportes que aproveitaram esse momento para praticarem o caratê, o judô e o vale tudo que aprenderam na renomada academia areal. O meu pedaço de carne eu já havia comido no caminho, e o de Matilde embrulhei dentro da calcinha para ela comer disfarçando. São estratégias montadas para evitar que eles a mordam. 


Terminada a sessão do salve-se quem puder, eles em transe, queriam comer a câmara de ar e a pomada. Espantei-os com o facão de lenha. Por descuido decepei a mão de um deles e os outros foram brigar pela mão suculenta que caiu no chão. O mais velho pegou a mão e correu com ela na boca. Os demais voltaram-se para a vítima e ficaram chupando o sangue que saía do ferimento. Simpatizaram com a carne e não sobrou nem os ossos do irmão mais novo. Fui dormir tranquilo porque no dia seguinte tinha outra carvoeira para fazer.                 

   


Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 10/02/2021 – 15:45

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