sexta-feira, 7 de junho de 2019

PONDERAÇÕES SOBRE A CAVERNA, DE JOSÉ SARAMAGO - por Domingos Cardoso


A Caverna
                                           de
                                  José Saramago


Gostaria de começar com uma confissão pública:
Eu nunca tinha lido Saramago!!!
Porquê? Por aquilo que fui ouvindo dizer aqui e acolá: que era pedante, que era convencido, que não usava pontuação, porque alguém tinha começado a ler e tinha desistido, porque disse uma vez na biblioteca de Faro que quando estava com insónias ditava o que lhe vinha à cabeça para um gravador e ao outro dia a Pilar passava para o papel, porque era comunista…

Eu prefiro dizer que vivíamos, eu e ele, numa certa indiferença, ou melhor, num grande alheamento mútuo: ele, no seu génio, não precisava, para nada, que eu o lesse; eu, na minha auto-suficiência, achava que não precisava de o ler para ser mais humano e mais culto.

Do que disse atrás podem tirar-se, no mínimo, duas conclusões: uma delas, não sei se a primeira ou a mais importante, é que nunca devemos pensar pela cabeça dos outros; antes, devemos ser nós a formar as nossas opiniões em vez de adoptar as alheias como nossas, julgando-as válidas.

A outra conclusão é a de que se havia alguém que estava a perder com este distanciamento, esse alguém era somente eu.

Por isso estou grato à Comunidade de Leitores da Biblioteca, em geral, é à Dra Maria Helena Malaquias, em particular, por me terem proporcionado esta epifania já que de uma verdadeira revelação e descoberta se tornou, para mim, este primeiro contacto com José Saramago.



Penso ser legítimo pensar que um texto publicado, apesar de continuar a ser propriedade do seu autor, já não lhe pertence e cada leitor poderá interpretá-lo conforme o seu entendimento e a sua sensibilidade.

Sendo assim, o que é que eu li e vi, ou adivinhei, neste romance? Qual foi o impacto que a leitura deste livro teve na minha mente?

Na minha visão a história contém três recomeços: o primeiro, mais discreto e quase imperceptível, é o aparecimento do cão na vida das personagens e talvez não seja inocente o facto de ele ocorrer após uma visita de Cipriano ao cemitério onde repousava a sua esposa.

As outras duas são mais notórias e explícitas: a segunda é o fabrico dos bonecos e a terceira e última é a partida dos dois casais para a aventura de uma nova vida.

Poderá parecer que a mudança da família para o Centro é, também ela, uma mudança mas na minha opinião ela é apenas o intróito da última e grande mudança que é o abandono da casa e o rompimento claro e definitivo com o tipo de vida que tinham levado até aí, numa espécie de rebelião nunca pressentida.

Das personagens intervenientes na história a que mais me intriga e fascina é a do guarda Marçal que nos é apresentado como uma pessoa certinha, asséptica, de certeza bem escanhoado, impecável na sua farda bem engomada, servil e fiel cumpridor de todas as regras por mais absurdas que possam parecer.

É um burocrata das relações humanas, bem comportado e fiel zelador do cumprimento de todas as cláusulas do regulamento interno. Aliás, a promoção e a cedência de um apartamento no condomínio é uma nítida recompensa do seu servilismo e subserviência e a sua promoção mais parece a cenoura que se mostra ao burro e que o faz caminhar.

Outra figura, aparentemente secundária nas com uma grande força e influência no desfecho da história, é a de Isaura especialmente quando diz que abraçava o cântaro na impossibilidade de abraçar o oleiro e quando confessa ter dormido na cama deste durante a sua ausência no Centro levando-o a declarar que ela não tornará a dormir noutra que não a dele.

Aliás, a leitura do livro é feita esperando dois momentos: um, a explicação para o título escolhido para a obra e a outra é o momento da assumpção do amor entre o oleiro e a Isaura.

Ficámos a saber (se é que ainda não soubéssemos…) que não basta o amor para duas pessoas se encontrarem. São precisas condições materiais e chega a doer a declaração de Cipriano quando constata que não tem nada de material para oferecer a Isaura.

Especulando um pouco, podemos ver aqui os escrúpulos que o autor terá sentido antes de assumir a sua relação com Pilar. Poderia não ter problemas materiais a impedi-lo de dar esse passo mas teria o problema da diferença de idades.

O autor, por várias vezes, dá-nos conta da sua condição de narrador; citarei apenas duas: a primeira, logo no início quando nos diz que a Marta está grávida mas que ela ainda não o sabe e a última, talvez o momento mais bonito do livro, ocorre quando ele ordena que nada se mexa, que ninguém fale, que tudo se suspenda porque o Cipriano e a Isaura vão cair nos braços um do outro.

O autor serve-se e usa as palavras como poucos eu tenho visto fazer. Repete, descodifica, esmiuça até a ideia ficar completamente nua e visível.

Vejamos apenas como ele descreve a ausência da mulher que o deixou viúvo: “Cipriano Algor aproximou-se da sepultura da mulher, (…) três anos sem aparecer em parte nenhuma, nem na casa, nem na olaria, nem na cama, nem à sombra da amoreira-preta, nem sob o sol esbraseado da barreira, não voltou a sentar-se à mesa nem ao torno, não retira as cinzas caídas da grelha nem vira as peças que estão a secar, não descasca as batatas, não amassa o barro,(…) (pág. 45).

No início da pág. 71 disserta sobre a validade das frases feitas desmontando o seu significado e na pág. 127 cita palavras como se fossem “um bando de aves que se cansasse de voar e descesse das nuvens (…)”.

Impressiona a imaginação do autor e a enumeração das coisas quase até à exaustão. É o que acontece na pág. 75 com a relação dos bonecos encontrados na enciclopédia, e nas págs 277 e 308 em que cita o que se pode encontrar e fruir no shopping do Centro.      

O Autor fala de coisas simples mas pela dignidade que lhes confere transforma situações banais em momentos perenes contidos em frases concisas carregadas de sabedoria.

Outras vezes disserta longa e labirinticamente sobre acontecimentos, sentimentos, pessoas, realidades, conjecturas, etc, como o faz ao descrever o processo pelo qual as instruções emanadas pela mente chegam aos cérebros dos dedos que dão forma e fazem reais o que foi imaginado.

“Como se nos quisesse meter no coração” (pág. 272) explica-nos a razão de “numa escada, aqueles que não descem, sobem, e aqueles que não sobem, descem.” (pág.324).

Melhor não diria Monsieur de La Palice mas a verdade é que são constatações deste tipo que aproximam o leitor da arte de contar uma história.

E esta está repleta de frases antológicas de que citarei apenas algumas, para terminar esta minha apreciação breve e despretensiosa:

“Para que o céu se abra é preciso que uma porta se feche” (p. 343),
“Quando estamos a perguntar por alguém estamos a dizer de nós próprios muito mais do que se poderia imaginar” (p. 340);
“As palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem (p. 77),
“Não vale a pena esperar conclusões só porque resolvemos parar no meio do caminho que nos levaria a elas.” (p. 28),
“Até a tesoura come pano quando corta” (citado de cabeça).

Espero que tenham gostado tanto de ler este volume como eu apreciei a sua leitura.





                                                                Domingos Cardoso
                                                                    Abril de 2018



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