A Caverna
de
José Saramago
Gostaria de
começar com uma confissão pública:
Eu nunca tinha
lido Saramago!!!
Porquê? Por
aquilo que fui ouvindo dizer aqui e acolá: que era pedante, que era convencido,
que não usava pontuação, porque alguém tinha começado a ler e tinha desistido,
porque disse uma vez na biblioteca de Faro que quando estava com insónias
ditava o que lhe vinha à cabeça para um gravador e ao outro dia a Pilar passava
para o papel, porque era comunista…
Eu prefiro dizer
que vivíamos, eu e ele, numa certa indiferença, ou melhor, num grande
alheamento mútuo: ele, no seu génio, não precisava, para nada, que eu o lesse;
eu, na minha auto-suficiência, achava que não precisava de o ler para ser mais
humano e mais culto.
Do que disse
atrás podem tirar-se, no mínimo, duas conclusões: uma delas, não sei se a
primeira ou a mais importante, é que nunca devemos pensar pela cabeça dos
outros; antes, devemos ser nós a formar as nossas opiniões em vez de adoptar as
alheias como nossas, julgando-as válidas.
A outra conclusão
é a de que se havia alguém que estava a perder com este distanciamento, esse alguém
era somente eu.
Por isso estou
grato à Comunidade de Leitores da Biblioteca, em geral, é à Dra Maria Helena
Malaquias, em particular, por me terem proporcionado esta epifania já que de
uma verdadeira revelação e descoberta se tornou, para mim, este primeiro contacto
com José Saramago.
Penso ser
legítimo pensar que um texto publicado, apesar de continuar a ser propriedade
do seu autor, já não lhe pertence e cada leitor poderá interpretá-lo conforme o
seu entendimento e a sua sensibilidade.
Sendo assim, o que
é que eu li e vi, ou adivinhei, neste romance? Qual foi o impacto que a leitura
deste livro teve na minha mente?
Na minha visão a
história contém três recomeços: o primeiro, mais discreto e quase imperceptível,
é o aparecimento do cão na vida das personagens e talvez não seja inocente o
facto de ele ocorrer após uma visita de Cipriano ao cemitério onde repousava a
sua esposa.
As outras duas
são mais notórias e explícitas: a segunda é o fabrico dos bonecos e a terceira
e última é a partida dos dois casais para a aventura de uma nova vida.
Poderá parecer que
a mudança da família para o Centro é, também ela, uma mudança mas na minha
opinião ela é apenas o intróito da última e grande mudança que é o abandono da
casa e o rompimento claro e definitivo com o tipo de vida que tinham levado até
aí, numa espécie de rebelião nunca pressentida.
Das personagens
intervenientes na história a que mais me intriga e fascina é a do guarda Marçal
que nos é apresentado como uma pessoa certinha, asséptica, de certeza bem
escanhoado, impecável na sua farda bem engomada, servil e fiel cumpridor de
todas as regras por mais absurdas que possam parecer.
É um burocrata
das relações humanas, bem comportado e fiel zelador do cumprimento de todas as
cláusulas do regulamento interno. Aliás, a promoção e a cedência de um
apartamento no condomínio é uma nítida recompensa do seu servilismo e
subserviência e a sua promoção mais parece a cenoura que se mostra ao burro e
que o faz caminhar.
Outra figura,
aparentemente secundária nas com uma grande força e influência no desfecho da
história, é a de Isaura especialmente quando diz que abraçava o cântaro na
impossibilidade de abraçar o oleiro e quando confessa ter dormido na cama deste
durante a sua ausência no Centro levando-o a declarar que ela não tornará a
dormir noutra que não a dele.
Aliás, a leitura
do livro é feita esperando dois momentos: um, a explicação para o título
escolhido para a obra e a outra é o momento da assumpção do amor entre o oleiro
e a Isaura.
Ficámos a saber (se
é que ainda não soubéssemos…) que não basta o amor para duas pessoas se encontrarem.
São precisas condições
materiais e chega a doer a declaração de Cipriano quando constata que não tem
nada de material para oferecer a Isaura.
Especulando um
pouco, podemos ver aqui os escrúpulos que o autor terá sentido antes de assumir
a sua relação com Pilar. Poderia não ter problemas materiais a impedi-lo de dar
esse passo mas teria o problema da diferença de idades.
O autor, por
várias vezes, dá-nos conta da sua condição de narrador; citarei apenas duas: a
primeira, logo no início quando nos diz que a Marta está grávida mas que ela
ainda não o sabe e a última, talvez o momento mais bonito do livro, ocorre
quando ele ordena que nada se mexa, que ninguém fale, que tudo se suspenda
porque o Cipriano e a Isaura vão cair nos braços um do outro.
O autor serve-se
e usa as palavras como poucos eu tenho visto fazer. Repete, descodifica,
esmiuça até a ideia ficar completamente nua e visível.
Vejamos apenas
como ele descreve a ausência da mulher que o deixou viúvo: “Cipriano Algor
aproximou-se da sepultura da mulher, (…) três anos sem aparecer em parte nenhuma,
nem na casa, nem na olaria, nem na cama, nem à sombra da amoreira-preta, nem
sob o sol esbraseado da barreira, não voltou a sentar-se à mesa nem ao torno,
não retira as cinzas caídas da grelha nem vira as peças que estão a secar, não
descasca as batatas, não amassa o barro,(…) (pág. 45).
No início da
pág. 71 disserta sobre a validade das frases feitas desmontando o seu significado
e na pág. 127 cita palavras como se fossem “um bando de aves que se cansasse de
voar e descesse das nuvens (…)”.
Impressiona a
imaginação do autor e a enumeração das coisas quase até à exaustão. É o que
acontece na pág. 75 com a relação dos bonecos encontrados na enciclopédia, e
nas págs 277 e 308 em que cita o que se pode encontrar e fruir no shopping do
Centro.
O Autor fala de
coisas simples mas pela dignidade que lhes confere transforma situações banais
em momentos perenes contidos em frases concisas carregadas de sabedoria.
Outras vezes
disserta longa e labirinticamente sobre acontecimentos, sentimentos, pessoas,
realidades, conjecturas, etc, como o faz ao descrever o processo pelo qual as
instruções emanadas pela mente chegam aos cérebros dos dedos que dão forma e
fazem reais o que foi imaginado.
“Como se nos
quisesse meter no coração” (pág. 272) explica-nos a razão de “numa escada,
aqueles que não descem, sobem, e aqueles que não sobem, descem.” (pág.324).
Melhor não diria
Monsieur de La Palice mas a verdade é que são constatações deste tipo que
aproximam o leitor da arte de contar uma história.
E esta está repleta
de frases antológicas de que citarei apenas algumas, para terminar esta minha
apreciação breve e despretensiosa:
“Para que o céu
se abra é preciso que uma porta se feche” (p. 343),
“Quando estamos
a perguntar por alguém estamos a dizer de nós próprios muito mais do que se
poderia imaginar” (p. 340);
“As palavras são
apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que
possamos chegar à outra margem (p. 77),
“Não vale a pena
esperar conclusões só porque resolvemos parar no meio do caminho que nos
levaria a elas.” (p. 28),
“Até a tesoura
come pano quando corta” (citado de cabeça).
Espero que
tenham gostado tanto de ler este volume como eu apreciei a sua leitura.
Domingos Cardoso
Abril de 2018
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