Ensaio sobre a cegueira
José Saramago
[...]
Se há livros cuja leitura nos
pode incomodar e deixar pouco
confortáveis este será,
seguramente, um deles.
É verdade que nem todos os livros
servem para nos
distrairmos apresentando-nos um
mundo fácil, risonho onde
tudo é leve, agradável e
prazenteiro, onde todas as
personagens são boas pessoas ou
bem-intencionadas.
Como diz o poeta da canção, há
sempre um lado lunar em
todas as pessoas (e coisas ou
situações, acrescentaria eu…).
Porém, muito mais do que um lado
lunar, o “Ensaio sobre a
cegueira” dá-nos uma visão
caótica, dantesca, aterradora,
aflitiva, pessimista e arrepiante
dum acontecimento
hipotético que nos deixa a pensar
na maneira como
reagiríamos ou como nos
comportaríamos se fossemos
submetidos a uma provação igual à
que é narrada no livro.
Daí, o abanão nos ombros, a
bofetada na cara, o murro no
estômago que sentimos durante a
leitura destas mais de
trezentas páginas.
Suponho que, intencionalmente, as
personagens não têm
nome próprio para mais facilmente
as sentirmos
desumanizadas numa sucessão de
vicissitudes que nos
incomodam, repugnam, causam nojo
e, não raras vezes, nos
fazem dizer arrh…
É isto que dizemos quando
imaginamos as personagens cegas
a fazerem o alívio matinal de
escarros e ventosidades ou a
defecar, primeiro, nos corredores
do manicómio e, depois,
nos passeios das ruas da cidade.
É este arrepio que sentimos
quando imaginamos sermos nós
a pisar esses montes de
excrementos, a tropeçar no lixo ou
nos animais mortos, a não termos
água para nos lavarmos, a
cheirarmos a putrefacção dos
cadáveres, a sermos
testemunhas de cenas escabrosas
de sexo violento imposto
que, por não consentido, para
além de aberrante, se torna
repugnante.
Este é um dos livros que dão
razão a quem diz que uma
biblioteca é o lugar onde se pode
perder a inocência sem
perder a virgindade.
Quero aqui declarar que não
acredito que todos os cegos “de
longa data”, digamos assim,
sejam, pessoas de má índole,
facínoras, ladras e perversas
como as que nos são
apresentados por José Saramago.
E mesmo que as haja
individualmente acho pouco provável
que se tenha reunido um tão
grande grupo delas durante a
quarentena com propósitos tão
desumanos e procedimentos
tão vis.
Mesmo assim, ou talvez por isso
mesmo, reconforta saber
que o Autor os castigou com o
fogo purificador dum
incêndio.
Sei perfeitamente que, dentro da
ficção, tudo é permitido e
todos devemos esperar tudo. Mas
nesta obra há momentos
em que nos parece impossível que
pessoas cegas possam
executar a movimentação e ter a
desenvoltura de movimentos
que são descritas o que nos leva
a pôr em causa a
verossimilhança das descrições.
Inverossímil pode também
considerar-se o facto de a mulher
do doutor continuar a ver, no
meio daquela epidemia geral,
mas se tivesse ficado cega, como
os outros, o Autor não teria
olhos para fazer a narração e não
haveria história…
Da leitura feita quero guardar
uma imagem e uma frase
colhidas, curiosamente, da mesma
página: “Se os teus pais
voltarem, encontrarão dependurada
no puxador da porta
uma madeixa, de quem poderia ela
ser senão da filha,
perguntou a mulher do médico,
Dás-me vontade de chorar,
disse a rapariga dos óculos
escuros”.
Já a frase “O puxador da porta é
a mão estendida de uma
casa” é das mais belas e mais
profundas que encontrei em
todo o livro.
Para terminar gostaria que me
dissessem qual a vossa
interpretação das frases finais
da obra: “Depois levantou a
cabeça para o céu e viu-o todo
branco, Chegou a minha vez,
pensou. O medo súbito fê-la
baixar os olhos. A cidade ainda
ali estava”.
Afinal, a mulher do médico ficou
cega ou não? Dado que a
cegueira se caracterizava pelo
branco que os atingidos diziam
ter nos olhos, podemos concluir
que sim, que ficou cega e
que, indiferente a esse triste
facto, a cidade ainda ali continuava.
Por outro lado, somos levados a
pensar que não, pois a
cidade ainda ali se encontrava,
isto é, a mulher do médico
continuava a vê-la. Logo, não
tinha ficado cega.
Janeiro de 2019
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