VACA BRABA
Vaca Braba, até o tanto que posso me lembrar, não tinha nada de braba. Tinha era muita alegria e disposição. Era puta antiga na Coréia; sua figura preenchia os espaços daquela rua alegre.
Tinha quase dois metros de altura, pés 42, e as mãos, enormes e fortes, denunciavam a infância no cabo da foice no engenho. Tudo nela era agigantado, e sua voz era compatível com o restante da figura. Andava com os braços balançando desengonçadamente ao lado do corpanzil. Não me lembro de tê-la visto com os pés calçados.
Ria um riso destabocado, e suas gaitadas eram ouvidas de longe. Sua disposição para rir e ficar alegre só se igualava à enormidade de sua figura.
Arranjou uma filha, que cresceu na Coréia e se iniciou cedo no meretrício pela mão da mãe. Também era corpulenta e usava franjas. Quando começou a ficar mocinha, peitos mal pipocados, tomava banho nua no Pirangi, para delícia dos meninos. À falta de outro nome, e como se parecia com a mãe, lhe batizaram de Vaquinha. Como tinha o hábito de se abaixar e urinar na rua, estivesse onde estivesse, completaram-lhe a alcunha: Vaquinha Mijona.
Por nova e solicitada, Vaquinha Mijona envelheceu tão rápido quanto a mãe, atolada na aguardente o dia todo.
Vaca Braba era disposta, de munheca pesada, e não foram poucos os homens que ela surrou com sua mão larga. Um tapa seu valia por duas quedas. Uma vez, de brincadeira, deu um bofete no tocador de pife Goelinha, que ele foi parar no Hospital Regional. E em mulher, então, nem se fala: ela batia de bunda limpa arroxeando as nádegas com sua manopla.
Mas, um dia, ela perdeu a parada, para sempre e sem esperar. Sentou-se para beber com um homem na casa de Maria Uleiro, e, como sempre fazia, emborcava de copo cheio. O homem, espantado, desafiou-a para beber no bico da garrafa. Como nunca havia enjeitado qualquer parada, Vaca Braba não se fez de rogada e topou de imediato.
Mastigou duas piabas e ordenou a Maria Uleiro que abrisse uma garrafa de Pitu. Temperou a garganta, deu uma cusparada no chão e encostou o gargalo da garrafa na bocarra. Cabeça levantada, o nó da goela se mexendo a cada gole, foi bebendo devagar e sem interrupção. A esta altura, a casa já estava cheia de gente. As pessoas acompanhavam em silêncio a façanha.
À medida que a garrafa ia meando, os olhos de Vaca Braba iam-se avermelhando, e, de sua testa, grossos pingos de suor caíam rosto abaixo. Vaquinha Mijona incentivava a mãe com gritinhos.
A garrafa esvaziou, e ela nem teve tempo de colocá-la sobre a mesa: estatelou-se dura, e, na queda, seu peso enorme rebentou a cadeira. Os cacos de vidros se espalharam pela sala. Vaquinha Mijona deu um grito:
– Que foi, mãe?
O corpo frio, rija como uma tábua, Vaca Braba não respondia.
Levaram-na em cima de uma cama de lona para o Hospital Regional, o cortejo quase a correr pelas ruas. Vaquinha Mijona chorava, enquanto seguia os homens que levavam a cama.
– Torna logo, mãe.
No dia seguinte, o serviço de som do Bar Riso da Noite tocava a Ave Maria de Gounod com o chiado característico. Esse disco só era passado quando morria alguém na Coréia. O alto ficava de luto; emudeciam-se as putas.
O locutor entrava no meio da música:
– ... e agradecemos a todos que comparecerem a este ato de caridade cristã.
No caixão azul, Vaca Braba estava mansa e serena em sua mortalha roxa, costurada por Dona Maçu.
Vaquinha Mijona sumiu no mundo e nunca mais voltou a Palmares.
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