DIÁLOGOS DO INCONSCIENTE
A menina ficou contente porque ia viajar. No dia da partida, acordou logo cedo por estar com dor de cabeça. Retificando: quem estava com dor de cabeça era o escritor, pois desde ontem que não encontrava essa menina para colocar numa frase. Ela se levantou da rede suja. Tão pobre que sua casa estava cheia de goteiras pingando no chão batido. A noite toda recebendo pingos de chuva, para ela já fazia parte da sua vida desconfortável.
Por que você não apareceu antes, menina? Eu lá sabia que você me queria para inserir nas suas histórias!? Então, os pais dela pegaram os sacos cheios de roupas e meteram os pés na estrada. Eu não posso ir nem de bicicleta? Você não tem bicicleta. Andaram e andaram que ficaram com os pés cheios de bolhas. Acredito que já estou com fome. Isso mesmo. Nos lugares que passavam nem tinha o que comer e nem beber e ficaram durante cinquenta dias sofrendo desnutrição acentuada e desidratação no último grau. Isso é humanamente impossível. Você é minha personagem, e eu faço você passar pelo que eu quiser, além disso não vou apagar o que escrevi.
Ela, mesmo assim, continuava contente. Mentira, como é que eu estaria contente depois de sofrer fome e sede? Você é minha prisioneira, lembra-se? Quando chegou a um lugarejo, as pessoas eram muito mais pobres e, além disso, estavam todos com lepra. Quando eu vou comer? Calma, mas eles tinham um coração tão bondoso que ofereceram comida e bebida da melhor qualidade. Muito bem, obrigada. Ela comeu juntamente com... seus pais ou com os leprosos? Claro que foi com meus pais. Não, porque seus pais já haviam morrido no caminho. Você não tem o direito de matá-los.
Ela só não morreu juntamente com eles porque furtou um pedaço de rapadura que ele guardava no bolso. Além do sofrimento, você me coloca como ladra. Depois que deixou seus pais para os urubus comerem... Peraí, eu jamais iria abandoná-los dessa maneira. Pois abandonou, já que não tinha como cavar covas e, ainda por cima, você estava muito fraca.
Ela jantou com os leprosos e foi para o quarto. Quando estava quase pegando no sono, chegou uma velha e a obrigou a lavar a louça sob ameaça de lhe contaminar. Assim é demais, além de cansada ser obrigada a lavar a louça! Isso mesmo.
Quando ela chegou à cozinha, havia montes de pratos para serem lavados, pois só quando aparecia alguém sadio era que aquilo acontecia. Pela manhã... eu já morta, diga logo, ela estava cheia de lepra. Mate-me, seu sem inspiração que quer aparecer às minhas custas. Calma, não me atrapalhe.
Ela havia sido contaminada e apresentava as feridas mais feias do mundo. O que é que você tem contra mim? Aquilo doía tanto que ela teve vontade de morrer. Eu poderia querer ficar curada, não restam dúvidas. Só que os outros infectados não deixaram ela cortar seu próprio pescoço. Por quê? Precisavam dela para lavar a louça.
Os dias foram se passando com ela trabalhando em troca de comida, que por sinal já estava toda estragada. Eca!, eu não como comida estragada! A carne estava cheia de tapurus, no entanto ela comia, de encher a boca, aquela guloseima que servia para aliviar as dores. Eu pensava que estava de boa, só agora foi que descobri que hanseníase causa dores. Isso mesmo! Você sentia dores terríveis e uma vontade grande de se jogar no desfiladeiro. Posso escrever minha própria história? Tudo bem. Vou aqui ao banheiro e volto já.
A menina rezou tanto que ficou logo curada, enquanto isso o escritor permanecia com uma tremenda dor de barriga defecando sangue. Ele gemia com dores até sair uma lombriga da sua barriga que parecia uma anaconda...
Voltei garota. Ainda bem que essa anaconda foi fruto da sua imaginação. Na verdade, ela continuava com lepra e sem chance de escapar da maldade do autor. O que aconteceu foi só um cochilo vingativo que não vingou, pois o escritor foi rápido e assumiu o poder a tempo de vê-la sofrer ainda mais.
Depois, a menina fugiu. Ufa!, ainda bem que aconteceu uma coisa boa. Lá, distante muitas léguas, encontrou um hospital especialmente construído para cuidar de hanseníase. Obrigada mais uma vez. Agora sim, vou progredir na vida. Quando as enfermeiras avistaram aquela menina sem um braço comido pela infecção... Homem!, você estava tão generoso. Agora, é melhor dizer que caí seca sem vida. Sem um braço é demais. As enfermeiras a acolheram e logo lhe internaram na UTI. Aí, a partir daquele momento... Eu fiquei boa, coloquei prótese e levo uma vida confortável. Nada disso. Ela ficou cega. CEGA? Tateava e chorava se lembrando dos tempos bons quando só tinha perdido um braço. Era lá bom, você é quem está dificultando ainda mais para que eu sinta saudades de um pequeno relativo sofrimento.
Mesmo assim, os médicos descobriram que algumas partes dos olhos dela seriam aproveitáveis para transplante, então retiraram e colocaram apenas algodão nos buracos. Ela nunca gemeu, de tão ruim que era. Quem lhe disse que eu era ruim? Quando tinha apenas seis aninhos, matou a irmãzinha sufocada com um travesseiro. Eu nunca tive irmã, seu cabra safado. Você está querendo é justificar essa tortura. Aos sete anos, sua mãe teve outro bebê que ela jogou no fogo. Não podia ver uma criança que logo matava, retalhava e comia os restos. Vá mentir pra lá. Eu nunca fiz isso. Depois de cega, ela ficou sem poder defecar. Colocaram uma sonda e nem andar direito ela conseguia por causa de uma das pernas amputadas. Quer dizer que eu fiquei também perneta, foi? Assim é demais. O maior defeito dela era ser ansiosa. Queria saber tudo que fosse acontecer na sua vida e também queria interferir onde não era da sua responsabilidade, porém o escritor se negou a dizer antes que ela também ficou com câncer generalizado. Acabe logo com esse meu sofrimento, infeliz. A dor era tão intensa que nem com morfina ela ficava em paz. Vai bem dizer que me matei. Ela não se matou porque o outro braço estava totalmente necrosado. Parecia mais uma corda velha de tanto remendo.
Finalmente... o quê? Os dentes caíram todos. Fiquei banguela? Aconteceu isso como castigo para ela nunca mais esquecer que torturou, a dentadas, sua amiguinha até à morte. Você acha que alguém vai acreditar nessa conversa fiada? E então... terminou? Ela sabia que seu sofrimento começava naquele momento em que foi transportada diretamente para o inferno com corpo e tudo. Pelo menos fiquei livre de você. Ao chegar ao inferno... vamos continue. É melhor não dizer quem ela encontrou por lá.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 26.09.2023 – 20h02min.
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